Contra Vapor

"Este país está cheio de espertos e moralistas que até chateia. Precisava era de ser pasteurizado em merda de uma ponta à  outra"
José Cardoso Pires, in - Balada da praia dos cães

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sexta-feira, novembro 25, 2005

E agora Velha Europa?

“Ás vezes, em França, os proprietários de pequenas moradias possuem cães tão grandes como vacas. E para defender o quê? Uma mesa de cozinha com toalhas aos quadrados, uma cama para duas pessoas com uma colcha de croché, um relógio do avô e uma televisão a cores.”
Rudolf Bakker


A geração que fez o Maio de 68, e que barricou Malraux e a Sorbonne e derrubou De Gaulle, a geração que quis mudar o mundo com cocktails molotov, acordou há dez dias no seu pior pesadelo. A profecia de Marcel Joohandeau em 6 de Maio de 1968 cumpriu-se com um rigor que faria Nostradamus corar de inveja – “Voltem para vossas casas! Daqui a dez anos, todos vocês serão notários…”.
Nem todos são notários, há até alguns que são deputados europeus, mas quase todos eles se transformaram naquilo que há quase 40 anos combateram nas ruas de Paris – em burgueses refastelados e conformistas.
A notários não chegarão certamente os milhares de jovens que estão envolvidos nos piores motins urbanos de que há memória na Europa nos últimos anos, repetindo o que aconteceu em Los Angeles há uma década, depois de uns gorilas da LAPD terem espancado um jovem negro.
As grandes cidades europeias, símbolos de um certo cosmopolitismo multiétnico, são hoje um autêntico barril de pólvora; basta dar fogo ao rastilho, para a revolta se propagar por todas as “bidonville” e guetos suburbanos da Europa, como aliás já aconteceu na Alemanha.
Previsivelmente, este fenómeno vai despoletar um acalorado debate sociológico e ideológico, em que a Velha Europa gosta de rebolar, sempre que a sua miopia e inércia é sacudida, e quando os seus orgulhosos valores universais são vítimas das insanáveis contradições de que enferma uma certa ideia de que a Velha Europa faz dela própria, como aquelas senhoras excessivamente maquilhadas e dadas as liposucções, mas sem solução para a decrepitude.
Mais do que os milhares de carros incendiados em Paris, o perigo está no aproveitamento que for feito dos escombros dos motins. Devemos todos preocupar-nos com o rescaldo político desta Intifada urbana. Os grandes vencedores das batalhas-molotov de Paris e Toulouse não são os Ahmeds e Hassans, franceses, filhos de emigrantes, que vivem na lógica criminosa de bairros degradados e veneram Alá, com a mesma facilidade que se submetem aos cânones do rap guerreiro americano, numa busca de identidade transterritorial, que é também a matéria-prima e o húmus do terrorismo muçulmano.
Os grandes vencedores serão os extremismos, que vivem como parasitas destas inquietações, que se alimentam do medo e da intolerância, cada um com o seu hábil harpejar de conveniências. Quem ganha antena e megafone são os Le Pen`s e as Dianas Andringas (salvo a devida escala) desta Europa. O debate será entre a política do cacetete e da contextualização, formas ambíguas de iludir esta séria ameaça à paz social da Europa.
Cada uma destas correntes de pensamento extremista dará a sua interpretação dos motins de Paris, e ambas darão respostas e soluções, apenas viáveis no domínio das utopias sociais, que estiveram na base dos mais graves conflitos de que a Europa foi palco no século XX.
Le Pen, credenciado xenófobo e racista dirá que a culpa é da imigração, dos terroristas que são acolhidos pela França, abrigados sob o santuário da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, e que roubam os empregos aos franceses de gema, pegam-lhes fogos aos Renault, e querem tornar a França numa república muçulmana e obrigar as colecções da Chanell a incorporar o véu muçulmano. A solução está no autoritarismo, na repressão, no fecho de fronteiras, porque só assim a França recuperará a sua grandeza e os franceses os seus empregos. Isto é, como se sabe, música para os ouvidos de muito boa gente, sobretudo a mais pobre e que vive com maiores dificuldades, que vê num magrebino um rufia ou um mártir da Al-Qaeda.
Do outro lado, a esquerda bem pensante dirá, com a generosidade que só a ignorância autoriza, que o fenómeno é causado pela falta de integração social, pela discriminação, e por uma cultura de planeamento urbano que favorece a concentração em guetos de comunidades étnicas, que são afastadas como excrementos de uma sociedade egoísta e preconceituosa. Para esta esquerda, que nunca andou num bairro tramado depois das sete da tarde, ou num comboio da linha de Sintra, os Ahmeds e os Hussein, coitados, são produtos de um modelo esclavagista e racista. Eles não são beras, só ficaram beras porque o capitalismo selvagem e a sociedade os obrigaram.
Está visto que não há maneira de enterrarmos o bom selvagem do Rousseau, até ao dia em que o bom selvagem, inimputável por definição, nos enfiar uma navalhada no estômago.
Para esta esquerda luminosa, a solução está no franqueamento das fronteiras, na demolição dos bairros degradados, e na construção de vivendas com sardinheiras no jardim para estas pobres vítimas do infortúnio, cujas grandes ambições são ter uns ténis Nike e um telemóvel 3G. Como se vê, é tão fácil como isto alinhar no discurso preconceituoso e estereotipado.
O que está em causa com os motins de Paris, transcende em muito a criminalidade vulgar, pelo que não basta a urgente reposição da ordem pública, com meios adequados, e proporcionais à violência enfrentada (sim, o cacetete também é legítimo para impôr a autoridade de um Estado democrático). É preciso que a União Europeia e os Estados Membros coloquem no topo da sua agenda temas como a imigração, o futuro das cidades, a integração e tolerância social.
Entre as barricadas de Paris e o vergonhoso tratamento dado pelas autoridades espanholas aos refugiados e imigrantes em Ceuta a distância é demasiado curta, e o tempo demasiado escasso. A Europa envelhece e precisa de imigração, como de pão para a boca, mas não apenas para ter “escravos” a preço de saldo a trabalhar nas obras para prover as nossas pensões e para o sustento do falido modelo social europeu, mas para receber todos aqueles que queiram melhorar as suas condições de vida e participar num projecto colectivo de bem comum, onde a liberdade, igualdade, fraternidade não sejam palavras vácuas para usar nos discursos pomposamente fúnebres do Palácio Eliseu.
A França e os franceses estão a pagar bem caro essa falácia de sociedade aberta, que oculta um chauvinismo e racismo ultramontano, ou uma tolerância burguesa e meramente intelectual (como a da geração de Maio de 68).
A França paga o preço de ter aceite os imigrantes para reconstruir um país e assentar tijolos, mas raramente ter aceite os imigrantes e os seus filhos para notários (como tantos compatriotas nossos o amargamente sabem).
Como diria Jean Cocteau “A França é um galo em cima de uma estrumeira. Tirem a estrumeira e o galo morre”. A França paga hoje o preço da sua autista soberba.
Outros se seguirão.

Requiem por um cão de quinta

“(…)Às vezes sabíamos de ti pelo aroma
das glicínias escorrendo no muro,
outras pelo rumor do verão rente
ao oiro dos velhos plátanos.
Vais e vens. E quando regressas
é o teu cão o primeiro a sabê-lo.
Ao ouvi-lo latir, sabíamos que contigo
Também o amor chegara a casa.”

Eugénio de Andrade, “Memória dos Dias”


Em pleno vapor da panela de pressão autárquica e espasmos corporativos de toga e farda de três em pipa, parece-me prudente e de bom gosto tergiversar sobre cães.
Deixemos a toga, por ora, na paz surda das suas regalias de casta, e a farda em desfile “fashion”na caserna de Zé Castelo Branco. Deixemos Felgueiras aos seus trauliteiros, Oeiras aos seus embusteiros, e o resto deste país entregue, como sempre, a uma respeitável súcia de filibusteiros.
Falemos de cães, daqueles que ladram indiferentes à chinfrineira da caravana autárquica. “Uivemos, irmãos!”.

O Leão morreu. O último príncipe plebeu da dinastia de cães de quinta dos meus avós morreu novo, desapareceu envolto em bruma de D. Sebastião de cauda a abanar, e abalou lá para o seu nefando Al-Quibir.
Leão chegou cachorro e foi recebido como príncipe que era; coroado de mimos, festas e cabriolices, perante o ar desaprovador do meu avô: – Dão-me cabo do cão se o rebentam com mimos, ainda fica podengo manso!
Pois sim, cão de quinta não é para ser apaparicado como lulu burguesote de pêlo enrolado e tratado. Cão de quinta, malgrado o porte, é para ser cão bravio, domado à voz do dono. É para carregar carraça, eriçar pêlo e arreganhar incisivo a forasteiro mais afoito a meter o pé em ramo verde.
Cão de quinta é guarda fardado, não é dama de companhia para as festarolas de “madames ao buffet”.
O meu avô, sempre severo com animais, nunca dá aos seus cães a confiança de uma festa; aprecia-lhes o trotear camarada e a lealdade quando vai para a horta, mas não lhes autoriza a cúfia e o abuso, que são banidas a enxoto em ameaça de butes. Apesar de o temer, Leão dedicava-lhe uma estima discreta e fiel, reservando as brincadeiras e a pândega para nós, e para a minha avó a paixão rejubilante.
A minha avó era quem lhe dava comida, mas também quem o tratava com aquela familiaridade íntima que os cães adoram, porque os faz pertencer a um mundo de afectos.
Na quinta isolada da Gardunha a minha avó queixa-se muitas vezes: – Passam-se dias que não vejo ninguém, só falo com o teu avô e com o cão!
E era mesmo. Ralhava com ele, fazia-lhe festas com palavras doces como as que dá aos netos. Era digno de se ver as suas procissões organizadas caminho acima para desentorpecer as pernas, apanhar ar e alargar horizontes para lá dos muros da quinta.
A Dona Piedade à frente, seguida de Sua Eminência Cardeal Leão, bamboleando a sua importância à frente do triunvirato de gatos vadios, que foram acolhidos pela Rainha daquela quinta-castelo do bom coração.

É certo que o presságio do meu avô se confirmou, porque o Leão acabou por se fazer pacholas, um Gandhi canino de língua à banda, incapaz de se pegar com os gatos-refugiados ou rosnar a qualquer forasteiro em visita a desoras.
Foi de todos os cães da quinta, o primeiro que nunca vi rosnar, nem ladrar zangado, nem eriçar o pêlo.
Com o amor e as festas ficou demasiado parecido com a minha Avó Piedade, demasiado bom cão, para ser cão bera. O meu avô perdoou-lhe a incompetência de guarda-nocturno com a recriminação: – O cão não dá sentido, nem sinal nenhum – como se fora cão-alarme – mas é bom cão, sim senhor!
Sentença lavrada, viveu o Leão uma vida curta, mas boa para cão de quinta. Comia o que lhe davam para comer, gulodices à fartazana em dias de festa e de sobras da família reunida, e minguava quando a ementa era um simples arrozinho ou sopas de leite, que já se sabe, os velhotes contentam-se com pouco.

Na sua vida curta pode não ter sido feroz cão de guarda, mas foi pelo seu carácter e generosidade, um excelente cão de companhia. Só os meus avós, e tantos avós como eles, isolados no frio da velhice, esquecidos nos Invernos de lareira nunca extinta, só eles sabem apreciar um cão de companhia afectuoso.
Salteadores de caminho e ladrões de fruta ainda os há, mas debandam as cidades, e movem-se nos corredores acolchoados do poder, por isso, e cada vez mais, os cães de quinta perderam a sua valência securitária e passaram a ter um papel humanitário.
São eles que substituem os filhos e os netos no coração dos velhos entre as Páscoas, os Natais e as festas da Nossa Senhora da Misericórdia. São eles que fazem os velhos sentirem-se vivos, nas suas preocupações, cuidados e ralhetes.
Ter animais para tratar é o melhor lenitivo para a solidão ressentida da velhice. Os cães de quinta parecem sabê-lo, e retribuem o trato com dedicação e uma psicologia por vezes interesseira do osso mais nutrido, mas sempre “humana”, de quem defende e ama “o próximo”.
- Já andava xoxito, era malina de certeza, andou lá por fora dois dias, e uma vez à tardinha apareceu-me aí com uns olhos tão tristes que até me doeu o coração, abeirou-se de mim, encostou a cabeça para uma festa, e depois meteu leirão abaixo. Veio fazer as despedidas antes de ir morrer longe.
-Contou-me a minha avó, sem conseguir conter uma lágrima furtiva. -Andei uns dias que até sonhei com o cão – confessou.

E ali ficamos no terreiro, debaixo das latadas de Setembro, a recordar os cães da quinta, desde a Bolinhas, que dava conta assim que assomávamos ao cimo do caminho; ou do Tarzan, o pastor alemão que veio já canzarrão, e que de manhã me ia abocanhar a mão à cama para irmos brincar para a ribeira; ou do Pirata, o cão vesgo de lutar com um lobo, raçudo e pequenote, estava sempre pronto para uma boa bulha (era o preferido do meu avô); ou a Coimbra, mãe-parideira que uma vez foi salvar a minha prima ainda criança de ir para a estrada.
Ali ficámos à sombra amena de Setembro a recordar os cães que cresceram connosco e que ganharam o espaço nas memórias felizes da família, os cães de guarda que sempre guardaram os meus avós da solidão.
Lá dentro na televisão, uma grande ladroada num debate de candidatos às eleições autárquicas, e nós cá fora, confortados nas saudades boas dos tempos que já não voltam.
Dou comigo a pensar que para os meus avós é muito mais importante o futuro cão da quinta do que o futuro presidente da câmara municipal. Olho para a televisão e acho que quanto mais conheço os homens, mais gosto de cães.

Sebastianismo, esse cadáver adiado

“O inconsciente dos portugueses recomeçou a carregar-se e electrizar-se com aquela loucura nacional (o sebastianismo), sem a qual, ai!, sem a qual – os portugueses são cadáveres adiados; sim são adiados… espanhóis!”
Vicente Sanches in “Promissão do Quinto Império”


Tragam-me um purgante, um laxante, um comprimido para o enjoo, ou o raio que o parta. Os próximos tempos vão ser aziagos, azientos, e propensos à doudice.
Vai ser um arrotanço de postas de pescada de alto lá com ele.
Portugal quer acertar contas com o passado, mas seria preciso recuar até Afonso Henriques para tirar meças à espada do “Fundador”, que reza a lenda seria um espadalhão de estoura-vergas, como o seu manuseador.
Como na forja da Lusitânia já não há centelha de génio nem serracenos para traulitar, resta-nos saldar contas com o nosso infausto passado recente.
As próximas eleições presidenciais são por isso um exercício freudiano, uma sugestão de hipnose para expiação dos traumas do passado, que nos permita resolver as aflições da vida presente e futura. Trata-se de um regresso a Édipo e a Electra, através dos “mitos” da política à portuguesa que melhor se identificam com a imagem do Pai – austero, crispado e castigador Cavaco; e da Mãe – Cordial, intuitivo e condescendente Soares.
Desenganem-se os sofisticados analistas, porque o fenómeno em causa é do fórum da psicanálise e da sandice endémica, e nada tem a ver com uma visão para o futuro do país, uma leitura do mundo em que vivemos, ou sequer um rumo para o nosso taralhoco devir colectivo. Trata-se de mais um ataque de sebastianismo, a doença crónica do espírito luso, que recrudesce em momentos de estertor de Portugal.
Só quem se renda a “delirius tremens” próprios do consumo exagerado de editoriais do “Expresso”, de patacoadas do “Prós e Contras”, ou de doses maciças de Brandy Mel, pode acreditar que estas eleições presidenciais são decisivas para o futuro.
Com todo o penhorado respeito que me merecem os néscios, não entendo como é que esta vaga de saudosismo místico pode trazer alívio para um enfermo cada vez mais carecido da beatitude apaziguadora da extrema unção.
Julgo natural ter saudades das coisas boas do passado -, como dos golos do Eusébio, das férias em Castelo Novo, do primeiro álbum dos Pixies, da primeira namorada, dos episódios do Dartacão, ou dos antigos camaradas dos copos.
Agora ter saudades do Cavaco e do Soares?! Tenham dó!


Portugal parece cada vez mais um bando de beatas à palheta no adro da igreja: “Os jovens de agora são uma pouca vergonha, no nosso tempo é que era”, sentenciam.
Esta é a grande clivagem geracional que vai emergindo e não se reduz a um boletim clínico sobre as aptidões físicas e intelectuais dos candidatos a Papandreou à portuguesa.
Perdoem-me a franqueza, mas uma sociedade que acredita que os seus velhos são o futuro, está a ficar xexé, decrépita, e irremediavelmente acorrentada a um passado que de glorioso apenas tem uma memória distorcida.
Na “Visão” Fernando Dacosta desfazia-se num choradinho sobre a forma como muitos dos homens bons da sua geração foram sendo arrumados na prateleira do esquecimento, e triturados por uma “nouvelle vague” de tecnocratas ambiciosos e sem escrúpulos que levaram este país ao estado miserável em que está.
Não discuto essas injustiças, mas para Dacosta e uma certa esquerda desencantada e ressabiada, a candidatura de Soares parece perfilar-se como uma “vendetta” da brigada do reumático contra os jovens turcos, cuja ambição fez perder Portugal - uma geração que, coincidência das coincidências, foi forjada sob o estigma do “sucesso” e da miragem do oásis cavaquista. Essas pieguices dacostianas caucionam a desresponsabilização colectiva, como se não tivéssemos todos culpas neste cartório da esperança frustrada.

Julgo mesmo que a única discussão relevante que poderia brotar destas eleições seria o papel da renovação das elites políticas e intelectuais na dinâmica e inovação das sociedades.
Essa discussão não vai acontecer por causa da bizantina regra da educação que nos instiga a ter respeito pelos mais velhos. Ora estou cheio de vontadinha de perder o respeito pelos mais velhos. Foram eles que nos serviram a liberdade e a democracia, que recebemos com a gratidão que se deve ter para todas as dádivas.
Mas c`um caneco, já lá vão 30 anos, e há certamente melhores formas de preservar e honrar a memória, do que conservar a memória no fermol do poder.
E quando falo no poder, não é apenas na Presidência da República. É também na administração pública, nas empresas do Estado e em muitas carreiras no sector privado em que a antiguidade é sinónimo de competência.
Os partidos políticos são apenas reflexo dessa falácia, utilizando os mais jovens, como o fenómeno Tino ou os milhões jotinhas como aberrações de feira, para mostrar que se estão a renovar e a meter sangue novo nas veias esclerosadas das organizações de poder.
É por isso que a pieguice de Dacosta é apenas ilusionismo fatela. O problema é exactamente ao contrário: Portugal é um país de velhos, governado por velhos, em que a alegada experiência, sabedoria e visão “estratégica” são glorificadas; em detrimento da inovação, da criatividade e do risco.
Somos um país conservador porque nos tornamos neste condomínio fechado de comparsas e clientelas, que desconfia dos “jovens turcos” porque vê neles uma ameaça ao seu poder quase vitalício e ao escudo de regalias que foi ardilosamente construindo ao longo dos anos.
Caminhamos para a gerontocracia caquética, e nem sequer nos damos ao respeito de saber cuidar dos nossos velhos; os outros, os sem-poder e sem-sobremesa (como dizia Ruy Belo); os velhos esquecidos e amontoados em filas de espera da morte, abandonados em lares escôncios e miseráveis.
Se não fosse indecoroso era cómico.

É por isso que optar entre Mário Soares e Cavaco Silva, é escolher um chão que já deu uvas. Eles são obviamente referências da nossa jovem democracia, mais pelas coisas que não fizeram, do que pelo que fizeram em matéria de governação.
E não consta que tenham feito um país moderno, civilizado, humano, eticamente responsável e economicamente sustentável. Falharam em todas as frentes e foram eles os primeiros coveiros; os que se seguiram apenas acrescentaram as pázadas com que se vai enterrando o defunto.
Endeusar Cavaco e Soares é por crendice de quem ainda não meteu no bestunto que este modelo de país deu o badagaio, faliu, implodiu, finou-se!
As próximas presidenciais são assim uma funesta adaptação da “Birra do Morto” de Vicente Sanches. Convém que um dia destes alguém informe o país que está morto, que se passe uma certidão de óbito, e que se continue com a vidinha, construindo um novo, que para viver há sempre tempo. Há uma geração que falhou Portugal e a já estamos fartos de ser cadáver adiado e cada vez mais adiados espanhóis…

Muito circo e pouco pão

“Os pobres são tão infelizes que, quando estiver na moda cagar dinheiro, pois bem, terão prisão de ventre”
Jorge Amado, Bahia de Todos os Santos

Um em cada cinco portugueses vive no limiar da pobreza. Basta imaginar que na fila para a caixa do supermercado, uma das pessoas que está à sua frente pode não ter dinheiro para o cabaz mínimo de sobrevivência: pãozinho, leite e ovos. Mas vá lá, isto é meramente estatístico, não é real. Não precisa de acordar a sua consciência ensonada só por levar no cabaz um patêzinho de estalo e um Murganheira meio bruto.
Aliás, se calhar está como eu, e nem sequer sabia que havia um Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Sabia certamente que há 364 dias internacionais para esquecimento da pobreza, e apenas um em que nos lembramos que há pobrezinhos no mundo, e que esse dia é lá para os fins de Dezembro, em que também se canta a missa do galo.
Um Dia Internacional serve mais para expiar a má consciência e o egoísmo colectivo do que para alertar e despertar. Dizer que um em cada cinco portugueses vive no limiar da pobreza não vende jornais, aliás um em cada cinco potenciais compradores do jornal nem sequer tem dinheiro para um papo-seco com margarina, quanto mais para ler as indigestas colunas de Vasco Pulido Valente!

Numa terra onde a inveja sempre prosperou, é difícil vender inveja embrulhada com a pobreza.
É por isso que os mais avisados pegaram no tema ao contrário, na lógica marxista de “quantos pobres é preciso para produzir um rico?”
Sei que esta interrogação exaspera os sacerdotes do capitalismo untuoso, mas a verdade é que há resposta:
– As 100 maiores fortunas significam 17 por cento do PIB, e 20 por cento dos portugueses mais ricos possuem 45,9 por cento do rendimento nacional.
Não alimento nenhum ódio jacobino em relação aos ricos, mas julgo da mais elementar prudência desconfiar da capacidade de Portugal parir tantos ricos e tão pouca riqueza. Também me cheira a esturro sermos o país da UE com o maior fosso entre ricos e pobres, o que significa que a classe média é hoje uma espécie quase tão extinta como o Tigre da Malcata.
É por isso que quando vejo na televisão aquele furúnculo iracundo que é o vozeirão dos patrões, um tal de Ludgero Marques, recordo sempre a citação de Roland Jaccard no “Dicionário do perfeito cínico”:
“Um pobre tipo esfomeado implora ao Barão de Rotschild:
- Senhor barão, há três dias que não como nada!
- Pois bem – responde o Barão – é preciso que alguém o obrigue!”

Com excepção do corajoso “Público”, que por contraste publicava também a sua revista de economia cor-de-rosa “D” (de dinheiro, o tal que falta a um em cada cinco); ninguém ligou patavina ao “insólito” da pobreza ser uma epidemia em propagação mais exponencial do que a gripe das aves.
Olhos que não lêem, coração que não sente, e provavelmente, muitos dos leitores do “Público” terão passado pelo dossier sobre a pobreza como cão por vinha vindimada, preferindo o “glamour” da página 41, com a reportagem sobre essa efervescente prova de cosmopolitismo lusitano - a Moda Lisboa.
Uma autêntica feira de vaidades fátuas e onanismo de alta costura, que este ano revelou mais outros segredos de Fátima (a Lopes, do biquini de diamantes), e anunciou que afinal “Ana Salazar também sabe criar roupa light”, notícia recebida com indiferença pela população sem-abrigo de Lisboa (cidade que patrocina generosamente a Moda Lisboa).
População essa, que segundo o estudo citado pelo “Público”, cresceu 25 por cento nos últimos cinco anos.
Não será certamente a roupa “light” de Ana Salazar a dar agasalho aos milhares de vagabundos do nosso país.
E também não será o milhão e meio de contos que a Santa Casa da Misericórdia vai dar ao Rali Lisboa/Dakar que trará consolo, sopa e apoio social aos velhos abandonados nas aldeias do nosso país.
Percebo agora a pressa socialista na remoção de Maria José Nogueira Pinto da Santa Casa; aliás, a sua remoção da gestão dos Euromilhões – O Governo português precisava de arranjar um “truque” contabilístico para patrocinar a operação de João Lagos, e nada melhor do que uma dócil gestão na Santa Casa, para “orientar” este Santo Patrocínio do Euromilhões.
Num tempo em tanto se fala da falência do modelo social europeu, e da falta de recursos para o sustentar, como é possível sustentar esta bancarrota moral e cívica?
Como é possível só agora descobrir a negociata dos preços combinados dos medicamentos para diabéticos e do pão sujo fabricado por padeiros-capitalistas?
Num país de pobres até o pão é corrupto! Querem melhor metáfora para esta falência imunda?

Neste regresso à choldra, o que dizer do facto do pertinente estudo sobre a pobreza levado a cabo pela Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade (CNIS) se ter mantido no anonimato circunspecto dos gabinetes. Percebe-se esta cumplicidade do silêncio, porque a pobreza é tema pestilento, é lepra que convém manter “longe da vista”.
De acordo com o estudo apócrifo, que incidiu sobre as freguesias, a unidade mínima e mais real de diagnóstico dos problemas do quotidiano, os portugueses identificam “desemprego, dependências e pobreza como os maiores problemas das suas freguesias”, e que “à medida que se caminha para o interior do país, há mais pobreza, mais analfabetismo, mais solidão de idosos”.
Estas são de La Palisse, pensará o indómito e liberal Luís Delgado que pulula dentro de cada aspirante a “yuppie”, para quem o combate à pobreza se faz rezingando uma moeda ao arrumador; ou à moda antiga, como as tias da Covilhã de Alçada Baptista (não perder a nova peça do GIC), mantendo nas fímbrias da caridade cristã uma horda de pobrezinhos.
Mas, além do diagnóstico da pobreza (que encobre a fome), este estudo revela que a maior parte das instituições locais de solidariedade social apenas prestam serviços “garantidamente” financiados pelo Estado, quer pela sua facilidade burocrática, quer pela sua simplicidade operacional. Assim, na modinha do subsídio-dependência, as Actividades dos Tempos Livres (ATL) e as creches são tão populares, como as rotundas e as piscinas o são para qualquer autarca-espertalhaço na homília da reeleição.
A rede de apoio social falha em toda a linha, precisamente porque não trabalha numa lógica de proximidade e de inovação. É preguiçosa, burocrática e míope, e sabemos que de nada serve deitar dinheiro para os problemas, porque o mais certo é ficar sem o dinheiro e conservar os problemas.
Os senhores autarcas que agora foram eleitos deviam começar a preocupar-se menos com as obras visíveis e meter as mãos nesse incómodo e ultrajante flagelo que é a pobreza escondida nas suas terras.
É também para isso que foram eleitos. É para isso que lhes pagamos, não só para fazerem as obras visíveis, mas também as invisíveis, as que não rendem votos, nem inaugurações mediáticas, nem maiorias albanesas.
A pobreza não pode ser mais o pó varrido para debaixo do tapete em dia de visitas.

Um fogo que arde sem se ver

"Em Portugal os incêndios não são uma fatalidade, o mau Governo é que é!"

Se La Fontaine decidisse escrever umas fábulas sobre Portugal, encontraria decerto farta matéria neste fumeiro à beira-mar plantado no ano de 2005 do Senhor. O país das baratas tontas seria uma hipótese académica que ganharia corpo, com a forma atabalhoada, desesperada e trágica como enfrentamos mais uma vaga de incêndios.
Tudo a correr de um lado para o outro, aos gritos de acuda! acuda! acuda! e as chamas de orelhas moucas a devorarem o manjar que a incúria e o desleixo dos homens lhe estendeu. “O fogo é ladrão e nós abrimos-lhe a porta”, dizia com propriedade na semana passada o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses ao JF.
Ora, um país tão pródigo em provérbios e dixotes teima em não levar à letra o prudente conselho “Casa roubada, trancas à porta”. O flagelo dos incêndios em Portugal não é uma catástrofe natural, porque não é consequência da imprevisível da fúria dos elementos, nem da força destruidora da mãe-natureza.
Este flagelo é de natureza previsível, é tão sazonal como a época balnear, e por isso escusam os senhores ministros virem aí com a ladainha da “fatalidade”. A única coisa fatal nos incêndios em Portugal é a impotência de um país e do seu Governo em os prevenirem, anteciparem, vigiarem, alertarem e extinguirem. Os incêndios não são uma fatalidade, o mau Governo é que é.
Dizem os apaziguadores que em tempo de combate e tragédia não é coisa bonita distribuir culpas. A culpa por cá fica para tia. Mas é flagrante que a culpa desta tragédia anual é de todos os Governos, das autoridades competentes e também das próprias populações; rigorosamente por esta ordem.
Quando o ministro António Costa encolhe os ombros, afirmando que este Governo não teve tempo para prever a calamidade, está a prestar-se à farsa farsolas. Ora, contas rápidas, este Governo foi eleito há cinco meses, que me parece tempo suficiente para preparar um plano de emergência e ter uma estratégia proactiva e não reactiva, como é de timbre nacional.
Num ano de seca extrema, não era preciso ser nenhum Nostradamus para “prever” o futuro negro. Não acredito que o Governo não soubesse o que ia acontecer, tinha era, como sempre, outras prioridades (como mudar a administração da Caixa Geral de Depósitos e a da Galp).
O Governo sabia que isto ia acontecer, mas também sabia que a teoria da fatalidade e o pouco tempo de exercício executivo lhe permitiriam passar, senão incólumes, pelo menos apenas chamuscados pelos fogos.

Se algum especialista em análise de conteúdos passasse em revista a comunicação social nacional na época idiota (que em Portugal é mais ou menos do dia 1 de Janeiro até ao dia 31 de Dezembro), depressa identificaria as palavras lavrar, incontrolável e ponta-de-lança (o tal do Benfica) como as mais largamente utilizadas pelos camaradas jornaleiros no período estival.
D. Dinis, “O Lavrador” ficaria arrepiado por ver o caminho que levava o seu cognome, e junto com ele o pinhal de Leiria. Por cá o arado está estacionado na loja junto com as outras alfaias agrícolas. Por cá, o mais que se lavra são autos e chamas. E agora agitam-se as consciências funestas, os analistas-incendiários e os especialistas, prontos para fazer o enésimo diagnóstico e a tretatésima terapia. Vai ser lume brando de pouca dura, porque o grande problema dos fogos, e de tudo o resto neste país, é que a memória é mais curta que um fósforo. Lá para Setembro, quando as chamas se extinguirem, o país escaldado entra em rescaldo, e os incêndios passam apenas a ser uma memória defunta e esquecida.
Os grandes problemas em Portugal são uma fatalidade, e não fazem parte das grandes prioridades do Estado e dos seus cidadãos. Os incêndios, a sinistralidade rodoviária, a pobreza, e a selvajaria no planeamento do território, que leva à desertificação do interior e de áreas florestais, ou seja ao seu abandono à vontade do fogo; são isso mesmo, fatalidades, para as quais as baratas tontas não têm remédio possível, e que vão ardendo todo ano, como fogo que arde sem se ver.
Para o nosso consolo de cidadania passiva, resta compadecermo-nos com a desgraça alheia e com a voracidade do monstro incendiário, que juntamente com o monstro do défice e o da corrupção, são os dragões que nenhum providencial São Pedro consegue degolar.
É por isso, que muitos daqueles que se apiedam com as desgraças das pessoas que perderam tudo hoje, nem sequer espreitam para o seu quintal, para ver se está limpinho e com uma cintura de segurança para evitar o pior.
É bom lembrar, que o fogo é ladrão que a qualquer momento nos bate à porta. É para não apagar estas chamas assassinas da memória, que também tenciono comprar a pulseirinha de solidariedade que a associação “Pinus Verde” vai lançar para apoiar as vítimas dos incêndios na zona do Pinhal.
Sob o lema “Pulsar verde”, para que a nossa consciência não se extinga mais facilmente do que as labaredas deste Verão.

Trabalho fingido

“Não quero ganhar a minha vida, já a tenho.”
Boris Vian


Um estudo recente de uma daquelas organizações internacionais com nomes pomposos publicado na revista “Visão”, mostrava que afinal em Portugal se trabalham mais horas do que a média europeia. No “ranking” dos escravos do relógio de ponto só somos batidos por alguns povos eslavos, que assim se chamam por insondáveis desígnios da etimologia.
São trinta e nove horinhas semanais que cada “tuga” passa a justificar o ordenado, normalmente baixo.
Isto é uma média, e não sabemos bem como é calculada, se pelo método de entrevista: – Quantas horas é que o senhor trabalha por semana – e já se sabe que a com ar contristado e afadigado o inquirido com propensão para a mentirinha e o exagero, responde - Olhe, trabalho que nem um cão, para aí umas dez horas por dia.
É assim que se mede a fibra de um trabalhador em Portugal, pela quantidade de horas que passa no seu posto de trabalho.
Ora, lembro-me de uma expressão do Alçada Baptista que para mim define bem esta calibragem entre a formiga e a cigarra que se debatem dentro de nós; o escritor dizia: “Discurso a preguiça e pratico o trabalho, enquanto outros há que praticam a preguiça e discursam o trabalho.”
Todos conhecemos aquela grande especialidade nacional que é fingir que se está a trabalhar. Basta para isso manter sempre um ar muito atarefado, quase esbaforido, e deixar que todos os colegas da repartição façam as malinhas antes de nós, para finalmente podermos ficar no escritório a ver sites de sexo na Internet até o chefe sair.
– Então Marques, ainda por cá a esta hora – Pergunta orgulhoso o chefe – Claro, chefe, isto é preciso aumentar a produtividade do país, todos temos que dar o nosso contributo. –
Responde o Marques enquanto abre rapidamente a folha de Excel, para tapar algumas mamocas mais salientes ao olhar do chefe.
Isto da produtividade tem muito que se lhe diga, e continua a ser uma espécie de paradigma de gestão balofa - premiar e estimular a quantidade de horas de trabalho, ao invés da qualidade de trabalho. É essa cultura pré-industrial e essa mentalidade manhosa que é preciso mudar. A produtividade nacional só vai aumentar quando se começar a discutir seriamente a organização do trabalho. O mais fácil e cómodo é acreditar naquela lenga-lenga de que os portugueses são preguiçosos, desorganizados, ineficazes, desleixados… Isto é uma espécie de preconceito racial que encarna naquele ódio comum que todos os engravatadinhos liberais nutrem pela figura odiosa do Funcionário Público, como se os vícios burocráticos e ociosos das repartições de finanças públicas não pudessem facilmente encontrar reprodução em qualquer empresa privada.
Ora, ao que conste a organização e planeamento do trabalho não dependem do trabalhador, dependem de quem gere os recursos humanos e aloca força de trabalho a determinadas tarefas.
É a mentalidade empresarial de índole quase medieval que impede desenhar estratégias de produtividade, porque a maior parte dos pseudo-gestores em Portugal se limitam a ocupar-se com o controlo de custos, e com despedimentos, é para isso que servem. A culpa do mau trabalho em Portugal é sempre do trabalhador, raramente do gestor, e essa cultura da irresponsabilidade é a principal responsável pela baixa produtividade do nosso país.
Se o caminho é tentar competir com os povos eslavos no que respeita a desregulação do trabalho ou flexibilização, que é instrumento perigoso nas mãos erradas, porque rapidamente nos leva ao abuso e ao excesso, então esse é um caminho que nos vai levar irremediavelmente para a cauda da Europa, que abanaremos sempre contentes, como o rafeiro à procura da festa.
Na Holanda, que não consta ser país improdutivo, os escritórios estão vazios às 5 horas da tarde, e as pessoas passeiam nos jardins com os filhos, lêem nas esplanadas, e até frequentam “cofee shops”. Em Portugal essa é a hora que para os gestores míopes se começa a trabalhar. Por cá diaboliza-se a preguiça, nos países sérios sabe-se que a preguiça é parte essencial da vida produtiva. Por cá esbanja-se o tempo com ninharias e falsetes, por lá valoriza-se o tempo do trabalho e todas as coisas boas da vida, que normalmente ficam para lá do horário de trabalho.

Os homens sem qualidades

Asnear em Portugal é coisa bem paga e bem quista entre algumas novas maiorias. Especialmente agora, em que um burro declarado e de papel timbrado pode ser ministro.
Trata-se precisamente do ministro Rui Gomes da Silva, a encarnação perfeita da personagem de Robert Musil – “O Homem sem qualidades.”
Este inefável e fiel escudeiro de Santana Lopes e compincha dos quatro costados do nosso presidente da câmara (Dom Frexes de Espada à Cinta) é o exemplo perfeito do sistema reinante em Portugal – a mediocracia.
Com a etimiologia da palavra a ser fundada na mediocridade.
Os medíocres medram neste lodaçal impuro, onde as espécies parasitárias têm uma esperança de vida invulgarmente longa e próspera.
O ministro Gomes da Silva foi infelizmente exposto à sua condição de asno de ouro, não tanto quando lançou o ataque a Marcelo Rebelo de Sousa, mas quando em sede da Alta Autoridade para a Comunicação Social, titubeou aquele que terá sido o mais fantástico contributo deste anedótico (e triste) Governo para a filosofia ocidental – ou seja, a célebre cabala involuntária.

Trata-se de uma abordagem paradoxistica só ao alcance dos grandes pensadores do racionalismo pós-cartesiano.
Uma cabala que se orquestra por obra e graça do divino espírito santo; sem ser combinada, maquinada ou estimulada.

Alguns pensadores mais críticos julgam mesmo que a expressão mais correcta para a tese cabalística de sua eminência parva Gomes da Silva, seria mesmo – cabala de geração espontânea.
Se bem que, segundo estudos recentes da Galloper, o prato de consumo corrente preferido desta maioria sejam os filetes de cabala, pressionados em molho de escabeche à “la Snob”. Opíparo pitéu degustado em “hors d`ouevre” nas esgotantes sessões de “think thank” que antecedem as quintas-feiras loucas do concelho de ministros.
De acordo com o gabinete do primeiro-ministro, este Governo tem uma capacidade inaudita de pensar mais rápido do que a própria sombra, e agir sem pensar, (acrescentamos nós).

Estes empolgantes, galvanizantes e quase épicos tempos, no discurso quase homérico do ministro Morais Sarmento, podem agora reservar o seu lugar na história, graças à prodigiosa edição de “100 dias de Governo”, que segundo os mentideros da coligação esteve para se chamar – “Operação pântano de tangas.”, ou; como colocar este país de pantanas, pensamos nós de que …

A épica narrativa, representa, segundo os críticos literários de serviço no “Diário de Notícias”, uma feliz adaptação dos Doze Trabalhos de Hércules, aqui multiplicados para 100 – um trabalho por dia, que são o testemunho deste frenesim hiper-decisório que é apanágio deste novo herói dos tempos modernos – Pedro Santana Lopes.
Recorde-se aliás os mais incautos, que Marcelo “oráculo de Delfos” Sousa havia sido acossado por uma visão sobre a doença hiper-decisória de Santana Lopes, já nos idos de Julho.

O livro agora editado tem o imprimatur da Lusomundo PT, e prefácio de Carlos Magno e Mário Bettencourt Resendes.
O autor do argumento adaptado é, como se sabe, Luís Delgado, que fruto da sua experiência como marioneta desprovida de livre arbítrio, consciência e independência crítica, conseguiu captar o necessário efeito cénico, e atmosfera dramatúrgica, que este épico necessitava.

A obra, já à venda nas principais livrarias, deverá também ser adoptado como manual obrigatório para as disciplinas de Religião e Moral, Educação Sexual Empresarial e Cívica, já no próximo lectivo; que segundo fontes próximas do Ministério da Educação, deverá também ver o seu início adiado, de forma a permitir ao ministro Gomes da Silva completar os exames “ad-hoc” em Português e Filosofia, e ver a sua inscrição aceite no ensino recorrente, num horário de alfabetização de adultos que seja compatível com a sua preenchida agenda de jantaradas conspirativas, com um arrozinho de cabala, com molho de “lapsus langue” findo com um arroto, involuntário, claro.

O que vinha mesmo a calhar era uma versão portuguesa do “Colateral” – com o Tom Cruise a apanhar o táxi no Rossio e andar aí por Lisboa a cometer uns homicídios … involuntários, claro.

Turismo de imitação

“Sinto que chegou finalmente o momento de atrair o turismo para a nossa região, utilizando os nossos recursos naturais, que são: a nossa completa ausência de organização, a nossa efectiva ineficácia e a nossa apatia.”
(Jean Dutourd, “Le Cherche Midi, 1990)

Pedir um Dry Martini no distrito de Castelo Branco é o mesmo que pedir uma revista pornográfica numa banca de jornais em Teerão. Ou seja, missão quase impossível, especialmente se formos afeiçoados à azeitoninha do cocktail preferido de James Bond.
É que o Dry Martini, como muitos outros cocktails de dimensão internacional é uma ciência exacta só ao alcance de uns alquimistas do copo, chamados de barman – nobre e honrada profissão, que tornou a psicanálise acessível ao comum dos mortais.
Ora, só quando existirem um punhado de Barmans competentes numa determinada região, é que se pode medir o estádio de desenvolvimento do turismo. É o que eu chamo o barómetro do garfo e do balcão.
Ora, não é preciso ser nenhum Ernst Heminghway ou José Quitério, para se saber que na Beira Interior se come razoavelmente mal e se bebe ainda pior.
Contam-se pelos dedos de uma mão por lambuzar os restaurantes de qualidade superior, que combinem a tradição culinária beirã, com a criatividade que se exige a uma cozinha moderna e inovadora – aquilo que eu chamo o paradigma do requeijão com doce de abóbora.
O principal factor competitivo da restauração beirã é o binómio preço/quantidade, ou seja mede-se no tamanho da travessa de batatas fritas e na quantidade de enchidos que ornamentam as couves de um cozido.
No beber, a pobreza das listas de vinhos só é comparável à gatunice desenfreada praticada nos preços.
Há, claramente uma lista segura de honrosas excepções, que me escusarei de enumerar, e também muito boa e honesta cozinha, escondida em aldeolas e feita de talento quase antropológico, da qual o expoente máximo é talvez o famoso cabritinho e o bacalhau das Eradas. O resto é mais ou menos paisagem para forrar o estômago e palitar o dente.
Cá na Beira come-se e bebe-se muito melhor em casa do que fora, e a não ser que façamos como os cubanos com as casas de sabores, e convidemos os turistas a ir lá comer uma chanfana da Avó Piedade, o mais certo é eles partirem da Beira Baixa meio desconsolados. Falta risco, investimento, imaginação e sobretudo diferenciação.

Aliás é tudo isso que falta na oferta hoteleira da região, com honrosas excepções, da qual destaco as únicas unidade modernas e de nível internacional da região – o Príncipe das Beiras no Fundão e o Vanguarda na Guarda. Todos os outros são tão estimulantes como um jogo de futebol do Benfica ou uma entrevista da Ana Sousa Dias.
Ressalva para o charme meio burguês do Astória nas Termas de Monfortinho e à rusticidade serrana do Hotel Serra da Estrela, de resto, tudo o mais, são hotéis ou motéis de passagem a caminho da Estrela, poisos de caixeiros-viajantes ou centros de congressos de Gastroenterologia. É que um grande hotel, bem localizado e com uma gama completa de serviços é um pólo de atracção turística per se.
Continua a faltar a toda a região uma espécie de jóia da coroa, que bem poderia ser o projecto nado-morto de recuperação do sanatório para uma pousada de grande nível. Ou então, atrevo-me a sugerir, o Colégio de São Fiel, que chegou a um lamentável e pouco católico estado de ruína, e que oferece um potencial magnífico para a criação de um hotel que faria o Pestana corar de inveja. Se alguém tiver aí uns milhõezitos a mais, metemos já mãos à obra!
Na França rural, existem dezenas destes hotéis nos locais mais recônditos e que estão totalmente orientados para um turismo de grande poder de compra e que procura a paz, a tranquilidade, um bom Spa e um cocktail bem feitinho. Ou seja, para reformados espanhóis, alemães, ingleses, americanos e japoneses poderem gozar as suas chorudas reformas.
Esse é um caudal de turismo a que a Beira Baixa não pode aspirar, porque não tem infra-estruturas de qualidade para os acomodar. É que muitas casas de Turismo de Habitação (que podiam bem servir esse tipo de clientes), não são mais do que turismos de imitação. Muitos dos seus feudais e falidos proprietários serviram-se da generosidade do Estado para recuperar os seus decrépitos solares, e agora velam para que o estabelecimento goze do maior sigilo, para não serem perturbados por gente do lúmpen. Há excepções, mas esta é a regra!

Ora, na cartilha do turista as principais preocupações são: Onde ficar, o que comer e o que ver. Assim o único recurso natural que temos em abundância e variedade é - o que ver, e mesmo esse precisa de ser urgentemente potenciado, promovido, sinalizado e divulgado.
É possível criar uma oferta integrada e diversificada nesta região que articule inúmeros circuitos em torno de pólos de atracção (como as aldeias históricas, a Serra da Estrela, as Termas de Monfortinho e a zona da Raia), só não é possível fazê-lo enquanto todos os agentes políticos e económicos da região andarem entretidos com as suas amesquinhadas diatribes e bairrismos parolos. Todos sabemos que o turismo é uma indústria em crescimento, que em Portugal contribui já com 13 mil milhões de euros para o PIB nacional, e que emprega mais de 500 mil pessoas, e que pode vir a empregar muito mais.
Representa uma oportunidade para regiões empobrecidas como a nossa, e por isso merece ser de facto uma causa regional e mesmo nacional, o que é bem diferente de ser uma cauda umbiguista e concelhia.

Quer isto dizer, que fazer manifestações por causa da intenção do Governo em barrar a criação de uma Escola de Turismo ou ameaçar com uma descida ultramontana ao Parlamento por causa de um Casino vetado na Estrela, podem até ser justas causas, mas arriscam-se mais a parecer reivindicações desgarradas, à escala daquelas que se fazem em passagens de nível.
Ao desenvolvimento do turismo na Beira Interior falta muito mais do que uma Escola de Turismo ou de um Casino da Serra da Estrela, falta uma visão estratégica de âmbito regional, só possível se houver de facto um pacto de regime entre autarcas ególatras que ainda não perceberam que os respectivos concelhos só são competitivos do ponto de vista turístico, se os concelhos limítrofes também o forem. A única lógica possível é a da complementariedade e não a dos muros.
Se uns dão medalhas e outros fazem velório, o que sobressai nestes destemperos é a aquilo que sempre pautou a política de desenvolvimento regional – os agradinhos ao poder central, a mão estendida, os cochichos, amuos e a zangas das comadres.
O futuro da Beira Interior não tem definitivamente espaço para tantos egos da salvação.
Mas, se o turismo for definitivamente encarado como uma prioridade regional, há espaço para uma formação séria e orientada para as necessidades do mercado de profissionais de turismo e hotelaria, que tanta falta fazem para elevar a qualidade dos serviços, para inovar e gerir empreendimentos turísticos, e até para confeccionar um Dry Martini como deve ser.

Por isso, das duas uma, ou o Engº Sócrates e Dr. Walter não gostam é do Dr. Frexes e do Dr. Pinto, ou não gostam de Dry Martinis e de um joguinho de Black Jack.
Se no primeiro caso até os posso entender, no segundo, não.
Fiquemos, por ora atentos às cenas dos próximos capítulos.

Posologia eleitoral

“Se os médicos tratassem dos seus pacientes como os actuais governantes tratam da política, todos esses doentes morreriam”.
Prof. Minkowski, Le Fígaro (7 de Fevereiro de 1992)


Em período de nojo pré-eleitoral, dificilmente me poderia furtar a um pequeno exercício farmacológico, para podermos enfrentar as cólicas que nos vão acossar colectivamente este fim-de-semana.
Passamos por isso uma breve posologia eleitoral sobre os principais partidos concorrentes às eleições domingueiras (ora bolas, não há bola). Todos eles podem ser tomados por via oral, ou na clássica forma do supositório, e prometem-nos saudinha da boa, em vez de nos tratarem da saúde, como o têm feito neste anos de doutores da mula ruça.


PSD/Viagra
Poderoso estimulante cerebral e sexual, ideal para quem sofre de disfunção eréctil, delírios de gigantismo e da síndrome de Peter Pan (o mito do eterno adolescente). Em relação à saúde do país, este fármaco de prescrição obrigatória nos últimos três anos, já provou aquilo que é capaz, graças à explosiva mistura dos compostos PPD e PP. As contra-indicações são óbvias – amnésia colectiva, desregulação orçamental, esquizofrenia galopante (a mania das perseguições), verborreia, e erecções espontâneas e inconsequentes geradoras de estados de instabilidade emocional. Não se deve tomar quando se conduz os destinos do país, já que diminui a coordenação motora.

PS/ Xanax
Calmante e relaxante muscular, que pode em certos casos ser tomado como anti-depressivo.
Para combater eficazmente a crise de auto-estima nacional deve ser tomado por via oral. É um fármaco muito utilizado na psicanálise, já que facilita o diálogo, mas em contrapartida diminui a clarividência e a capacidade de decisão.
De contra-indicações célebres, especialmente quando tomado com queijo limiano, que levou o laboratório responsável a aconselhar a sua ingestão em maioria absoluta. Se em maioria simples, a bulímia orçamental e a colónia de parasitas que se alojaram no “aparelho” digestivo do estado foram o que foram, imaginem então em maioria absoluta.
Apesar do novo rótulo e do design das cápsulas, os compostos químicos mantêm-se com elevado percentual das bactérias, conhecida dos biólogos da especialidade como “tralha guterrista”, que provocam fortes amnésias e crises de fígado agudas.

PP/ Hallibut
Fármaco para tomar em concomitância com o PPD, resultando daí as contra-indicações supra-citadas. É também um partido-pomadinha para aplicar em pequenas zonas do corpo do Estado, friccionando para chamar a atenção. Foi aplicado como unguento nas tropas, exterminando a doença do serviço militar obrigatório, mas deixou submarinos cravados como supositório nos próximos orçamentos (para as SCUT`S não há papel, mas para brincar ao Popeye já há), unhas encravadas na Justiça com um vírus Cardona e uma valente nódoa negra no caso Moderna, que nem com muita pomadinha se apagou. Como contra-indicação mais forte as insanáveis irritações cutâneas, em especial em espécies imigrantes.
Uma pomadinha perigosa esta.

CDU/Pastilhas Rennie
Para o catarro do fumador, males da garganta, e gripalhadas estivais, as pastilhas comunistas são sempre um clássico da farmacologia eleitoral, que mantém o mesmo receituário desde o tempo em que o Estaline ainda não usava bigode. Enquanto todos os outros fármacos eleitorais são de composição sintética, a CDU mantém-se fiel ao composto marxista-leninista, que dá aquele sabor tão especial a pastilhas da avó (estilo as do Dr. Bayard), boas para a tosse e para pouco mais.
Apesar de actualmente serem olhadas com a simpatia e complacência que se dedica às relíquias do passado, as pastilhas Rennie da política nacional só podem ser tomadas em juízo por quem sofra de azia eleitoral. As contra-indicações são conhecidas, tendência para a repetição e esquecimento, acentuadas num corpo decrépito e esclerosado.

Bloco de Esquerda /PROZAC
Enquanto a cannabis e o haxixe não são legalizados para fins eleitorais, perdão – terapêuticos, este vai sendo o nosso fármaco mais ousado e modernaço. Um autêntico PROZAC para andarmos numa boa, sem stress a curtir uma de “politicamente correctos” e socialmente empenhados. Num país depressivo, nada como este psicotrópico de brandos costumes, um sucedâneo “light” do LSD, para imaginarmos que podemos fazer um mundo melhor a partir de tiradas do “Le Monde Diplomatique”. Esta pastilha não é para os males do corpo; é para os males de um patético existencialismo urbano, que se sente culpado por andar de Mercedes Classe A, ter instrução superior e fazer viagens à Índia em primeira classe.
Há uns que experimentam a psicanálise, há outros que se alistam no Bloco. As causas da moda são produto de uma globalização cultural, o que até é giro, num partido que é contra a globalização. Não tem graves contra-indicações, a não ser a ressaca própria de quando passa o efeito do alucinógeneo; a não se que se misture com o PS, podendo assim criar um estado próprio de euforia despesista, fatal para o estômago do país.

Posto isto, se ainda tiver a doença da indecisão, o melhor é aconselhar-se com o seu médico de família, ou então fazer como eu, auto-medicar-se com genéricos de marca branca, e votar em branco.
Terapia que seguirei com a lucidez de quem sabe que na próxima segunda-feira o país estará exactamente na mesma, independentemente do supositório que a maioria decidir meter no rabiosque.

Paizinho, já sou deputado

“Depois da guerra, tinha duas opções: terminar a minha vida como deputado ou acabá-la como alcoólico. Agradeço a Deus por ter guiado tão bem a minha escolha: já não sou deputado! …”
Winston Churchill, conferência (Março de 1959), in “Antologia da Asneira no século XX”


Para o anedotário nacional, o antigo ministro da Administração Interna do PSD, Dias Loureiro, garantiu a posteridade com aquele célebre e enternecedor telefonema para o seu progenitor – Papá, já sou ministro!
Ora o tempo passa, e o senhor não só foi o ministro responsável pela caldeirada do bloqueio da Ponte 25 de Abril, que abriu a derrocada do cavaquismo, como se transformou num gestor de topo e numa espécie de Cardeal Richelieu do PSD.
Hoje, Dias Loureiro já não é ministro, mas pelo menos é uma rica pessoa.
Para muitos acrobatas do andaime da política nacional a ascenção começa (ou recomeça) esta semana, depois de distribuídas as listas de “casamento”, que é uma espécie de arrumação de conveniências com que são urdidas as listas de candidatos à Assembleia da República pelos círculos regionais.

Muitos dos putativos pares da nação já sonham com o momento em que poderão telefonar aos respectivos consortes, amantes, papás ou simples colegas de liceu, anunciando com a voz embargada de comoção:
– Já sou deputado!
O melindre que exige a composição das listas de casamento tem parecenças com este bailarico politiqueiro das listas de deputados. Em primeiro lugar, define-se o número de convidados com assento à mesa (lugares elegíveis), distribuindo-os pelos vários círculos eleitorais que são as mesas da boda.
O noivo, que é normalmente o líder do partido, reserva para si uma quota de convivas; para o líder do PS, por exemplo, são 30 por cento de cartõezinhos, fora aqueles que persuade a incluir nas quotas das distritais do partido, como sabiamente fez Pedro Santana Lopes no seu restrito clube eleitoral, acautelando o futuro dos seus mais dedicados serviçais, que viviam na eminência de engrossar as estatísticas do desemprego em Portugal.
A “noiva”, que são as “bases”, as distritais e concelhias do aparelho partidário, fica sempre reduzida à expressão do seu peso político, que como se sabe é insignificante, e por isso, lá consegue às vezes meter de calçadeira um desconhecido médico nativo, um antigo delegado regional de qualquer instituição local, um destacado dirigente da “jota”, um fadista desafinado, um autarca em fim de carreira; enfim alguma personalidade menor, dada às artes da intrigalhada (há honrosas e pontuais excepções) que é normalmente a mais empolgante diversão mundana que se pode almejar nos serões de província.
- Onde vais querido? Pergunta a esposa extremosa.
– Vou a uma reunião do partido, é um chatice, mas é para o bem da região! - Responde o ufano segundo secretário do concelho fiscal do partido XPTO, que encontrou mais uma boa razão para se “desenfiar” e ir beber uns copos com os amigalhaços da concelhia, e quem sabe, um dia aspirar à sombria quinta coluna da bancada parlamentar.
Qualidades como o servilismo, o oportunismo, e sobretudo a ambição, são essenciais para o pé-de-dança nesta boda.

Depois passa-se o mesmo que em qualquer casório.
Os que não foram convidados botam má-língua no noivado e coscuvilham valentemente sobre a farpela dos convidados e os lugares em que foram instalados à mesa. Já os afortunados convivas não perdem tempo em maldizer a comida – Esta sopa está fria! – rezinga um,
– É um consomée – responde prontamente o rival.
Enfim, é como diz um conhecido arguido da nossa praça – um verdadeiro farrabadó.
No fim de festa vêm as brigadas do “taparwere” a distribuir os restos do banquete entre as várias mesas, o que em jargão parlamentar se chamam as “comissões”.
E, ainda dizem que existe uma crise de representatividade no nosso sistema político. Cá por mim acho que o despudor com que é organizado este “copo-de-água” é bem representativo da política à portuguesa.
Sobra no processo, a vaidade pacóvia do ilustre desconhecido que vai galgar a escadaria da Assembleia da República praticar os seus dotes genuflectórios e levantar o braço a mando do dono, como fazem os cães amestrados.
Churchill fez de facto uma prudente escolha.

A indignidade da fome

“Se não és rico faz com que pareças sempre útil.”
Céline

Nunca esquecerei um velhote anónimo que conheci quando era puto numa festa de Natal organizada para as crianças de Castelo Novo pela Junta de Freguesia.
O meu avô era vogal e levou-me à festarola, onde havia mesa posta, com iguarias de lamber o beiço – filhós, doces, enchidos, queijinho, croquetes e rissóis; enfim um lanche bem arregimentado pelo forte espírito comunitário de que as aldeias são capazes.
Na festa estava o tal velhote, de quem o meu avô Manel já me falara em sussurro condoído – “Ele passa muito mal”, que para quem domina o linguajar, queria dizer que o homem passava fome.
Desempregado há longos anos, vivia com a mãe já acamada num cabanão da Gardunha, com horta pouca, que mal dava para o sustento da batata cozida e das couves, quanto mais para os remédios que esfumavam os três contos de réis da pensão.
E o velhote, no seu sarrafo coçado de pobre e a sua boina respeitosamente anichada na mão, lá se apresentou na festa comunitária, com um ar envergonhado e titubeante que lembro me ter causado visível impressão.
A mesa posta, rapidamente foi invadida pela populaça, que se atirou ao manjar com vontade e garbo, acotovelando-se para chegar ao chouricinho.
Sabemos que não é por mal, nem por ganância. É assim.
Estava ao lado do meu avô e do tal velhote, dois homens que conheciam o rosto da fome, e o meu avô incitou “Ande vá, ande vá comer” – o velhote embaraçado, respondeu “Ó senhor Manel, é deixar ir as crianças primeiro!”
Ali estava de pé um homem que passava fome, para quem um pão com queijo e azeitonas taparia os buracos do estômago. Ali estava um homem que dava prioridade às crianças, enquanto os restantes convivas se empanturravam com pastéis de bacalhau.
Felizmente nunca conheci a fome, mas naquele dia conheci a dignidade. E, esse velhote anónimo de que já me esqueci o nome, ensinou-me a preciosa lição de que a dignidade dos grandes homens não se reconhece pela farpela. Reconhece-se pela generosidade que pode brotar na pobreza.
Este velhote anónimo que morreu na miséria da tuberculose é o meu herói beirão, e uma das mais fortes memórias que fundam a minha ligação à terra.


Nada está feito, enquanto resta alguma coisa por fazer.
No caso da luta contra o desemprego, está tudo por fazer, em especial na Beira Interior, onde o desemprego continua a sua galopante cavalgada, rumo a um futuro sombrio e angustiante.
Nunca é agradável falar ou ler sobre desemprego.
É uma espécie de pudor tantas vezes remetido a bandeira de meia-haste eleitoral, a artigo estatístico no jornal, ou a pequeno drama familiar, explorado de forma lacrimejante nas Têvês em desespero de audiência.
O desemprego inspira piedade na sociedade portuguesa, e está sistematicamente no topo das preocupações dos compatriotas, quando chamados a botar “vox populi” sobre os temas que mais os preocupam no Governo da Nação. Não é por obra e graça do Espírito Santo que o Partido Socialista inscreveu no seu programa eleitoral a messiânica intenção de “criar” mais 150 mil postos de trabalho.
Os evangelistas das novas fronteiras sabiam que esse é um tema que fala ao coração caridoso das pessoas. O mandamento tem tanto de bíblico, como a multiplicação dos pães ou o “milagre” do crescimento económico; o novo Santo Graal da política económica nacional.

Só no Distrito de Castelo Branco, os números de desempregados de longa duração, superam a média nacional. Sabemos que o encerramento de fábricas e a débil estrutura empresarial da região explicam o aumento do número de desempregados, e a eminente ameaça da invasão têxtil chinesa virá agravar o problema e criar nalguns concelhos verdadeiras “catástrofes” económicas e sociais.
Ainda por cima, este problema afecta em particular homens e mulheres com mais idade e formação baixa, que os coloca à margem dos normais círculos de recrutamento. São uma autêntica legião de “excluídos” que engrossarão as plúmbeas estatísticas da exclusão social no distrito.
São famílias inteiras que ficam entregues aos humores e favores da justiça social, em situação de dependência extrema e em total desigualdade social, nas oportunidades e no acesso aos bens.
Muitas delas vão compondo a escassez com biscates e expedientes, e forrando a mesa com o produto das hortitas, quando as hortitas dão.
Porque a agricultura é de humores, e os de São Pedro parecem que andam de mal com a rega, e com a prosperidade do tomate. Dificilmente um pequeno agricultor verá um chavo de subsídio para a seca, que são destinados aos “pequenos” latifúndios da região, muitos deles organizados exclusivamente em função da lógica do subsídio, e não da produção competitiva.
Em pleno Séc. XXI, a ameaça medieval da fome temporã, volta a bater-nos à porta, desta vez de mansinho, pela calada da vergonha colectiva que nos faz desviar os olhos da miséria alheia. A côdea está cada vez mais negra, e nós cada vez mais cegos.

Os dramas humanos que se escondem sob o fenómeno “estatístico” do desemprego obrigam-nos a tirar as vendas de uma vez por todas, e exigir do Estado medidas que combatam eficazmente esta nova lepra, que exclui, afasta, inutiliza, empobrece e desespera.
É este combate ao desespero que urge travar, é o choque contra a pobreza e a desigualdade que é preciso aplicar antes de choques fiscais, tecnológicos ou afins. Essa batalha começa por todos nós, porque todos temos um papel a desempenhar. O primeiro passo é não ignorar o problema, não desviar os olhos e não imputar ao Estado todas as responsabilidades. Neste mundo, onde infelizmente os homens são lobos para os homens, podíamos aprender com os lobos, e saber que na matilha a solidariedade não é palavra vã.
Não falo da caridadezinha piedosa, da esmola que nos compra a consciência, da palmadinha nas costas ao som da “Má sorte a tua, antes que minha”.
Falo do respeito pela integridade da dignidade humana que é igualitária na responsabilidade que todos temos uns pelos outros. “Só olho um homem de cima, para o ajudar a levantar-se”, escrevia um escritor sul-americano (que não era o Gabriel Garcia Marquez).
Falo dos voluntários do Banco Alimentar contra a Fome, das empresas, das associações cívicas, das instituições de solidariedade social, das associações religiosas e da própria Igreja Católica que têm um papel fundamental no rastreio e acompanhamento da vergonha oculta que grassa nas nossas cidades e aldeias.
Este não é um tempo de virarmos a cara. É um tempo de recuperar a nobreza dos pequenos gestos e a grandeza da humanidade como projecto de bem comum.

Morte a crédito

“O dinheiro é mais útil que a pobreza, quanto mais não seja, por questões financeiras.”
Woody Allen “Deus, Shakespeare e eu”

Comecei a gostar de ler por causa de dinheiro.
A minha mãe tinha uma mania de aforro que era guardar umas notas graúdas de contos de réis em livros.
Como habitualmente se esquecia da poupança refundida, lá andava eu ao pinga escudo, a devorar literatura da pesada. Uma autêntica caça ao tesouro que rendia os maravedis necessários para esbanjar em guelas e na colecção de cromos do Mundial de 82. O melhor achado foi na Divina Comédia de Dante em que no Inferno reluzia uma bem verde nota de cinco contos.
Foi assim que completei a selecção da Argélia e do Kuwait, com os cromos difíceis, como o fantasista Ladkhar Beloumi, o melhor futebolista argelino de todos os tempos, antes claro do toque de calcanhar de Midas Madjer.

Aquela mania do aforro literário deu uma forte contribuição pedagógica para a minha formação cultural, já que fiquei com um conhecimento ao val d`oiseau (viram bem este franciú, um luxo!) de literatura clássica. Recomendo vivamente “Decameron” de Bocaccio, leitura obrigatória para qualquer puto de 15 anos poder prestar o seu culto a Onan …
Passei também a ser o maior especialista da minha rua no Mundial de Espanha de 82; o melhor da minha geração (o Brasil de Zico, Falcão e Sócrates, a França de Platini, a Itália de Rossi, a Polónia de Boniek, etc).
Mais importante que tudo isso; passei a gostar de dinheiro, e a interiorizar a falta que ele faz para comprar bens essenciais – guelas, cromos e pastilhas gorila com sabor a banana. Como diz com propriedade e graça um amigo meu “o dinheiro também tem a sua poesia”.

Toda a gente sabe que o dinheiro não cai do céu, a não ser os milhões de marcos que a RAF largava sobre a Alemanha. Chumbei repetidamente a Economia até topar a artimanha de Churchill e qual o problema do dinheiro cair do céu. Ingenuamente pensava que assim toda a gente seria mais feliz, com os bolsos cheios para gastar em abafadores e bolas de Berlim.
A verdade nua e crua é que o valor do dinheiro está na sua escassez, e de nada valia andar a esgravatar a Biblioteca Nacional na esperança de um bibliotecário aforrista, como a minha mãe, lá ter incautamente deixado uma nota de 10 contos.
Quando se começa a dar valor ao dinheiro está o caldo entornado. Deixamos de pensar em abafadores e bolas de Berlim para deitarmos contas à vidinha e sonhar com telemóveis, férias em Bora-Bora, ténis Nike, Audis Tdi`s e sofás reclináveis com massagista incorporada.
Graças ao Montepio Geral e a outras simpáticas instituições de crédito, podemos olhar para essas aspirações e gritar a plenos pulmões:
– É que é já … a seguir!

Os tipos da publicidade passam a vida a atormentar-nos com desejos e seduções, como fazia o pasteleiro com a montra dos bolos debruados a chantili, e lá temos de andar a contar os tustos para satisfazer as expectativas de consumo, que em Portugal sempre foram bem maiores que o estômago do porquinho-mealheiro.
Nisto, também o Estado português parece um daqueles estoura-vergas que torravam a fortuna de família no Casino da Figueira da Foz e inventava uns expedientes mais artolas para manter as aparências da aristocracia falida.
Os portugueses sempre foram uns tesos à espera de uma herança, um treze no totobola, de uma notita de conto num livro de Pantagruel, ou que a RAF fizesse um raid sobre o seu quintal. Não estranha por isso que o Estado português se trate com carros de alta cilindrada para directores-gerais, comboios de alta velocidade, Euros 2004 e reformas milionárias para os obscuros vice-consolados no Sri Lanka.
É tramado dizer isto, mas o Estado português é mais parecido com os portugueses do que nós gostaríamos de supor. Basta perguntar ao Dr. Hermano Saraiva, que caminho levou a dinheirama dos Descobrimentos para descobrir um paralelo histórico com os dinheiros da CE. Naquela época foram para perucas empoeiradas a talco e palacetes na Baixa, agora vão para campos de golfe e jipes. É este traço de nacionalidade, mais perene que debulhar caracóis e enfardar bejecas no Verão, que o nosso Presidente da República parece desconhecer, quando apela aos Bancos para limitarem o crédito e apoiarem investimentos reprodutíveis, estilo empréstimo para montar um aviário de galinhas poedeiras de ovos de ouro.
Parece não saber que a nossa Banca também anda a viver à conta do fiado internacional, e segundo consta, vai pagar o dinheiro ainda mais carote, por causa de um “rating” de má fama, atribuído por uma agência europeia que faz o “ranking” da agiotagem. Qualquer dia o Dr. Vítor Constâncio tem plantado à porta do Banco de Portugal um cobrador do fraque…

Por tradição, a banca portuguesa é propensa à agiotagem e ao lucro fácil, e isso até nos convém.
Preferimos empenharmo-nos até às orelhas do que ficar sem o carrinho novo (aquele com jantes de liga leve, leitor mp3 e Diesel económico, mas possante, para não passar vergonhas na estrada, nem no parque de estacionamento lá do condomínio). Por isso, caro Presidente não se meta onde não é chamado, e vá lá pregar esse paternalismo choramingas para outra freguesia, que cá nos vamos remediando com o fiado.
Antes viver do que morrer a crédito como no romance do Céline; afinal até os funerais, que estão pela hora da morte, se podem pagar em suaves prestações mensais.
Para reflexões sobre a portugalidade e leitura alternativa a José Gil ou Eduardo Lourenço, aconselho meditação em qualquer tasca raçuda, com serradura no chão e dizeres no azulejo: - “Só se fia a maiores de 80 anos, quando acompanhados do encarregado de educação”, ou então o meu preferido - “O camelo é o animal que aguenta mais tempo sem beber. Não seja camelo”.
Compatriotas, deixemos de ser camelos, que o melhor é beber para esquecer.

Corrupção a bem da Nação


“Enriqueça e, se roubar, não roube excessivamente, de cada vez. Poderia ser detido. Roube de uma maneira inteligente, a pouco e pouco.”


General Mobutu

A minha bisavó Rosário, dos Escalos de Cima foi no seu tempo pioneira do crime recentemente consagrado no Código Penal e que está agora mais popular que as baladas do Toni Carreira – o tráfico de influências.
Viúva cedo e com uma catrefa de filhos à ilharga para dar côdea; a rija mulher do campo cedo se dedicou aquele que é o crime mais praticado na História de Portugal, logo a seguir ao excesso de velocidade ou ao cheque careca.
Num tempo em que os direitos adquiridos só o eram com a boa vontade dos poderosos (desconfio que não mudou assim tanto), a pragmática mulher nunca se acanhou de pedir e meter cunhas, calcorreando todas as capelinhas para com manhas submissas pedir pelos seus.
Sempre a conheci assim, mesmo já com 80 e tal anos e apoiada ao cajado, metia-se pela estrada até Alcains, apanhava o comboio e ia a Castelo Branco ou a Lisboa pedir um emprego para os bisnetos, como o havia feito para os filhos e netos, com uma taxa razoável de sucesso, para a mais bem sucedida agência de emprego da família.

Pessoalmente, sempre tive algum pudor no método useiro e vezeiro nesta espécie de cultura informal que norteia as relações de mercearia da troca de favores. Confesso que no meu caso é mais por timidez e embaraço do que propriamente por imperativo moral; e se calhar é assim na maioria dos casos.
Mas, a verdade é que a cunha, o compadrio e o favor estão firmemente enraizados na sociedade portuguesa, e constituem terreno fértil para a corrupção prosperar.
Quem nunca meteu uma cunha para alguém entrar em determinado emprego? Ou pediu a uma prima enfermeira para facilitar a consulta de dermatologia? Ou ao amigo para ver se Câmara Municipal lhe colocava lá um caixote do lixo à porta?
Faz parte da lógica de lubrificação da máquina burocrática. É por ainda sermos tão dependentes do Estado e da burocracia, e por estes funcionarem tão mal, que somos tão sicilianos neste “modus operandi”.
Somos, como era a minha bisavó, dependentes de favor alheio e do chapéu na mão, e por isso estamos dispostos a retribui-lo na medida das nossas possibilidades e da nossa gratidão.
Sempre que se mete ou se aceita a mais simples cunha, estamos a extrair uma vantagem indevida e ilícita. Em bom português, estamos a passar a perna em alguém e a perpetuar o xico-espertismo nacional. Não contrariando e denunciando esta prática, contribuímos para a eternizar, e dificilmente podemos esperar que ela seja debelada nas esferas de influência que mais poder têm para a praticar.
A diferença entre uma pequena cunha em serviços públicos e um grande caso de corrupção e tráfico de influências entre autarquias, Estado e empresas, é meramente de escala e moldura penal. O princípio geral de desonestidade é exactamente o mesmo.

O reino da trafulhice organizada em que este país se transformou (ou se calhar sempre foi, surdamente) não é reflexo da política ou dos políticos, é o espelho de um país que assobia para o ar quando não lhe convém, e desata a ulular ó da guarda! quando lhe toca na pele.
É por isso que reina a impunidade. Porque a indignação esbaforida que perpassa os jornais e as conversas de café é tão eruptiva e efémera como as discussões sobre arbitragens após um derby.
No fundo, existe uma espécie de desvalorização ética em relação à corrupção, aos arranjinhos ou ao tráfico de influências; sobretudo se forem praticados ao serviço de um pseudo-bem público, trocando sobreiros por alegados postos de trabalho e desenvolvimento.
Na verdade, os portugueses estão-se a marimbar para se os políticos metem algum ao bolso, ou se os autarcas e os partidos andam à custa dos empreiteiros, ou se um árbitro apita à má-fila porque foi pago em rebaldarias sexuais.
Estão-se nas tintas, desde que o político seja do seu partido e tenha obra feita lá na terra; desde que o autarca pague os ordenados em atraso do clube de futebol e vá construindo umas rotundas catitas; e desde que árbitro apite a favor do seu clube.
Só assim se explica que Fátima Felgueiras, Isaltino Morais ou Valentim Loureiro pudessem ganhar eleições nas suas terras. Porque o povo julga que a trapaça foi em seu benefício.

Como dizia o escritor francês Henry de Montherlant “A política é como a linguiça, tem de cheirar um pouco a merda, mas não de mais.”
Nós por cá, até tresanda, e assim continuará enquanto o estrume não for revolvido e a bacorada vir o lombo moído a varapau. Num país de mãos untadas e costumes licenciosos, já vai sendo tempo da Justiça ser menos cega, surda e muda e no lugar da balança, tiver as mãos atadas.
Onde a porca torce o rabo é na falta de vontade política para dotar a investigação de meios para combater eficazmente a corrupção e o tráfico de influências, pelo menos enquanto essa vontade depender exclusivamente de alguns políticos…
Entre as prioridades da Nação, não consta nenhum choque ético, ou a perseguição feroz à evasão fiscal e ao financiamento ilegal de partidos.
Mais facilmente damos caça ao pilha-galinhas do que às raposas da alta finança, que se passeiam ufanas nos “off-shores”, nos seus carros topo-de-gama, nas suas férias em iates e nos seus torneios de golfe. Os liberais perfumados e queques chamam a este discurso – ódio aos ricos – mas cá pelas minhas contas, não há no nosso país pobres suficientes para produzir tantos ricos.
Portugal continuará a ser este pequeno paraíso dos grandes intrujões, enquanto não começarmos todos a limpar as mãos, mais ou menos sujas, em vez de as esfregarmos umas nas outras.

Os cardeais de bancada

“O jumento de Jesus pode ir a Meca, mas na volta continua a ser um burro.”
Velho dizer judeu


O escritor norte-americano Dan Brown fez mais pela popularidade da Igreja Católica do que o Concílio Vaticano II ou as santas e opulentas “graças” da Opus Dei.
Com a sua obra proscrita pela Cúria romana – “O Código da Vinci”, que noutros tempos lhe valeriam uns açoites ou umas queimaduras de primeiro grau, o escritor mais folheado e devorado das bancadas de hipermercados e de viagens de longo curso para Varadero, conseguiu realizar um milagre – fazer da igreja católica e dos mistérios da fé uma autêntica moda literária!
Bastou um bestseller a retratar Jesus Cristo como um homem de família, pai de filhos e mais humano do que a tradição católica o gosta de pintar, para que caísse o Carmo e a Trindade. Curiosamente, a blasfémia do policial sacro acabou por beneficiar a Igreja Católica, já que a trouxe as suas crendices e práticas obscurantistas e medievais para a ribalta da discussão de tremoço e cervejola na esplanada da esquina:
– Agora ando a ler os Evangellhos do Mar Morto pá, é de estalo, um gajo fica com outra luz sobre o assunto – diz o Costa. – Eh pá, quanto a mim essa história do Santo Gralo é mais uma tanga para sacar o dízimo à malta. Vai por mim, desde o Imperador Constantino que a Igreja anda feita com os políticos e a alta finança, não viste o caso do Banco do Vaticano – riposta o Alcides.
E, foi assim que da cataquese forçada e da Moral e Religião como disciplina opcional, passámos rapidamente à condição de eminentes teólogos Europa-América, capazes de praticar a mais sofisticada exegese bíblica e prerorar sobre o dogma do Imaculado Coração de Maria, inventado pelo Papa Paulo VI numa manhã em que não havia palavras cruzadas para resolver no “Observatório Romano”.

Tudo isto, a propósito da morte do Papa João Paulo II, ou de Karol Wojtila, como o José Rodrigues dos Santos o teimou em tratar como se tivesse andado na cataquese com o senhor. Foi de bradar aos céus, passe a expressão e fique a ideia. Na Espanha católica ainda houve uns murmúrios contra o excessivo peso mediático dado à morte e ao funeral do Papa na televisão pública.
Nós por cá, nem um pio, mais caladinhos do que ratos de sacristia, a competir pela lágrima fácil e pelo bota-discurso pungente, a ver as aventesmas de serviço da nossa RTP mudarem-se de armas e bagagens para a Praça de São Pedro para acrescentarem rigorosamente nada sobre um funeral, que apesar de tudo devia ter sido tratado com mais respeito católico, menos corujice mórbida e muito menos como um show-bizz devocional, que a própria hierarquia católica tratou de estimular, consciente que a espectacularidade ritual ainda é uma espécie de garantia de poder moderno do paramento.
Num momento de recolhimento e reflexão importante para a comunidade espiritual abrigada sob a cruz de Cristo e os mandamentos das encíclicas, descobrimos beatos e teólogos sob as mais insuspeitas lajes de sacristia. Afinal a tal tradição laica, republicana e ufanamente jacobina é boa para meter na gaveta das conveniências, assim que se dobram os sinos da aldeia para uma missa de finados.
Andaram aí uns senhores no princípio do século a passar à bengalada bispos e abades de volta para as igrejas, a tirarem-lhes o poder da água benta e das excomunhões que decidiam sobre o rumo colectivo das nossas vidas e da nossa forma livre de viver, pensar e amar, para agora em pleno século XXI nos prestarmos a uma farisaica e trafulha genuflexão perante as mortalhas do herdeiro de São Pedro.
Nem a leitura atenta do “Código da Vinci” e da Bíblia en passant nos dá o direito de sermos eminências forjadas nas subtilezas canónicas da teologia e dos rumos da Igreja Católica.
Esta tentação da bancada central, transformou-nos agora em Cardeais de bancada. Entre o tremoço e a cerveja discutimos o legado de João Paulo II, como quem comenta o sistema de jogo do Chelsea, e deitamo-nos a adivinhar o próximo Papa e o futuro sistema de jogo da Igreja Católica, com uma secreta esperança que seja o D. José Policarpo o nosso “Mourinho” do Vaticano. Haja Santa Paciência (padroeira de Portugal como dizia o O`Neill) para este “poltergeist” proviciano.

Karol Wojtila viu no comunismo o inimigo que supostamente ajudou a derrotar e sobre os seus escombros viu florescer um capitalismo selvagem e triunfante, inspirado por uma ética protestante e ferozmente individualista, ou seja, uma ética de clivagem com a doutrina de que era suposto ser o principal defensor.
Papa de convicções e contradições, mas homem bom, que descanse em paz.
Quanto ao futuro, e para todos aqueles que acreditam que o próximo Papa possa retomar o espírito do Concílio Vaticano II, de abertura à “modernização” teológica, é bom de saber que essa porta franqueada com bonomia pelo Papa João XXIII foi um acidente de percurso na longa história conservadora, ortodoxa e por vezes fanática da Igreja Católica.
Uma porta que João Paulo II tratou de fechar a sete chaves. A luta entre reformadores e ortodoxos no seio da Igreja Católica é um pouco semelhante à que ocorreu no PCP - todos sabem que a força conservadora e doutrinária dos dogmas da fé é a última salvação que impede a desintegração no cada vez mais competitivo e global mercado da fé. O Cardeal Ratzinger e o seu braço armado – a Opus Dei, sabem bem que sinuosos são os caminhos do senhor...
Em todo este histerismo confessional e autêntico fenómeno de massas apenas se falou de poder, intriga, política, realpolitik , ortodoxias, concílos, papabilis, consertórios, urbi et orbis, fumos brancos e por aí fora.
É disto que o meu povo gosta, como diria o Perestrelo e tão bem catrapiscou o Dan Brown.
Quanto à palavra de Cristo, ou o elementar e fundamental amor ao próximo, fica para outra encadernação.
Pelos vistos é o que menos importa, o que nem admira - já é assim para aí há 2000 anos.

Foi você que pediu um Dabliú Bush ?

Uma certa ideia da América ou uma América de certas ideias


Conforme se previa, ou pelo menos eu previa, o Georges W. Bush venceu sem margens para dúvidas as eleições na América.
As ondas de choque nas mentes iluminadas da Velha Europa continuam a fazer-se sentir, procurando rapidamente bodes expiatórios e formas de contextualizar como é que no berço da democracia ocidental é possível eleger um autocrata com tiques de imperador Smith (lembram-se do Lucky Lucke).

Os apressados politólogos de pacotilha, que somos todos um pouco, tal como treinadores de bancada, já identificaram a “causa do mal”.

Em primeiro lugar, o senador John Kerry, antes símbolo da esperança de um novo mundo, ou de um novo vento de esquerda a soprar no mundo, e agora passado à condição de débil, fraquexixas e irresoluto.
De bestial a besta, pobre homem, que agora terá de buscar conforto nas medalhas de guerra que agitou ufano durante a campanha (e que lhe valeram alguns amargos de boca) e no colo milionário da Senhora Kerry Ketchup.

O segundo culpado da desgraça que se abateu sobre o mundo é, naturalmente o povo americano, ou seja toda aquela massa de “red knecks” que bebe Jack Daniels, enquanto se embala na cadeira de balouço no caramanchão com uma caçadeira no colo, para matar comunas, árabes e extra-terrestes, e que vai à Igreja evangelista diabolizar os “modernismos” da outra América dos chiques e dos Europeus.

A tal outra América, mais europeia, mais benzoca e bem informada, literata, com mundovisão, que vai a exposições, vê filmes é criativa, inventiva e tendencialmente de esquerda.

Mas esta é a América minoritária, e apesar de tudo, a grande força da democracia é sabermos aceitar a vontade da maioria, mesmo que dela discordemos.
É perturbador ter de recordar isso aos pseudo-democratas que só o são quando os resultados lhes convêm. A tentação totalitária está tão presente nestes espíritos, como naqueles que aclamam a ditadura das maiorias. A linha divisória é ténue.

Na minha opinião, estas eleições tiveram um efeito positivo, que foi dissuadir os anti-americanistas primários de ver na “americanada” um só povo ululante e fascista, burro e militarista.
Pelo menos estes evangelistas do euro-centrismo perceberam de uma vez por todas que há mais do que uma América, há pelo menos duas, e se virmos com um pouco de atenção, descobriremos muitas outras.

É que convém não esquecer, que apesar da sua unidade formal e federal, os EUA são um continente, sensivelmente da dimensão da Velha Europa.
Acho insuportável que para atestar a “burrice” e a ignorância dos americanos e do Dabliú Bush, nos sirvamos dos estafados “gags” deles não saberem de cor e salteado o nome das capitais europeias e dos nossos notáveis líderes.
Pergunto-vos eu, e nós sabemos o nome da capital do Michigan, do Ohio ou do Tenesse.
Sabemos o nome do governador do Massachusets?, ou que Salt Lake City é a capital mórmon do mundo?
O Bush se calha não sabe que o vinho do Porto é produzido em Portugal, mas tenho a certeza que o Santana Lopes também não sabe onde é produzido o “Jack Daniels”.

Em matéria de desconhecimento e ignorância não podemos arvorar a nossa superioridade à sombra de uma história secular, onde figuram algumas manchas morais importantes – as cruzadas, o extermínio dos Maias e Incas pelos espanhóis, os abusos e exploração dos portugueses, as invasões napoleónicas, o sôfrego mercantilismo holandês, o orgulho e tirania imperial britânica, a Alemanha de Hitler, a Itália de Mussolini.
Não temos uma história para nos gabarmos aos americanos em matéria de direitos humanos e liberdades individuais, e eles também não.
Por isso, a via do moralismo histórico é sempre um pau de dois bicos.

Depois há a questão da escala continental.
Achamos que na América, mandam os fanáticos religiosos, os grunhos do Midwest, porque são milhões. Queria só propor o seguinte exercício multiplicador.
Imaginem que subitamente a França multiplicava a sua população por dez, ou por vinte.
O que acontecia, é que as regiões rurais, fortemente conservadoras e retrógadas, de um direitismo ultramontano atroz, passavam a ter um papel decisivo na eleição do presidente.
Não duvido que se isso acontecesse, Jean Marie Le Pen seria o futuro presidente da França.

E na Alemanha, na Itália, em Espanha, e mesmo em Portugal, o exercício é possível. Ou achamos que os “Américas” detêm o exclusivo dos grunhos, dos ignorantes, dos preconceituosos.
Em Portugal não há disso, nos velhos domínios do Cavaquistão? Pois não. Até parece que com esta febre anti-americana nos esquecemos o nome do nosso primeiro-ministro, do nosso ministro da defesa.

Os americanos têm senadores neopotistas que designam a filha (inepta) para lhes suceder, conforme aconteceu no Alasca. E nós?
Temos o Avelino Ferreira Torres, a Fátima Felgueiras, o Isaltino Morais, a Edite Estrela, o Valentim Loureiro.
Diria que à nossa escala estamos bem servidos de trafulhas.
Os americanos que se amanhem com o Dabliú Bush, já que o escolheram, e nós?
Nós que nos amanhemos com um governo ilegítimo liderado por um falsista, os italianos que se amanhem com um Berlusconi, os franceses com o Chirac, os russos com o Putin.

Acho que já era tempo de irmos olhando mais para o espelho, menos para o umbigo, e muito menos para os preconceitos que nos são incutidos sobre os outros.
A América não é melhor nem pior do que nós.
Os americanos (grunhos ou letrados) não são nem melhores nem piores do que nós.
A única diferença é o poder, e isso, infelizmente faz toda a diferença.
Eu nem quero imaginar o Santana Lopes ou o Berlusconi como presidentes da América, e o Portas como secretário da Defesa.
Acho que era gajo para votar no Bush.