Contra Vapor

"Este país está cheio de espertos e moralistas que até chateia. Precisava era de ser pasteurizado em merda de uma ponta à  outra"
José Cardoso Pires, in - Balada da praia dos cães

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sexta-feira, novembro 25, 2005

A indignidade da fome

“Se não és rico faz com que pareças sempre útil.”
Céline

Nunca esquecerei um velhote anónimo que conheci quando era puto numa festa de Natal organizada para as crianças de Castelo Novo pela Junta de Freguesia.
O meu avô era vogal e levou-me à festarola, onde havia mesa posta, com iguarias de lamber o beiço – filhós, doces, enchidos, queijinho, croquetes e rissóis; enfim um lanche bem arregimentado pelo forte espírito comunitário de que as aldeias são capazes.
Na festa estava o tal velhote, de quem o meu avô Manel já me falara em sussurro condoído – “Ele passa muito mal”, que para quem domina o linguajar, queria dizer que o homem passava fome.
Desempregado há longos anos, vivia com a mãe já acamada num cabanão da Gardunha, com horta pouca, que mal dava para o sustento da batata cozida e das couves, quanto mais para os remédios que esfumavam os três contos de réis da pensão.
E o velhote, no seu sarrafo coçado de pobre e a sua boina respeitosamente anichada na mão, lá se apresentou na festa comunitária, com um ar envergonhado e titubeante que lembro me ter causado visível impressão.
A mesa posta, rapidamente foi invadida pela populaça, que se atirou ao manjar com vontade e garbo, acotovelando-se para chegar ao chouricinho.
Sabemos que não é por mal, nem por ganância. É assim.
Estava ao lado do meu avô e do tal velhote, dois homens que conheciam o rosto da fome, e o meu avô incitou “Ande vá, ande vá comer” – o velhote embaraçado, respondeu “Ó senhor Manel, é deixar ir as crianças primeiro!”
Ali estava de pé um homem que passava fome, para quem um pão com queijo e azeitonas taparia os buracos do estômago. Ali estava um homem que dava prioridade às crianças, enquanto os restantes convivas se empanturravam com pastéis de bacalhau.
Felizmente nunca conheci a fome, mas naquele dia conheci a dignidade. E, esse velhote anónimo de que já me esqueci o nome, ensinou-me a preciosa lição de que a dignidade dos grandes homens não se reconhece pela farpela. Reconhece-se pela generosidade que pode brotar na pobreza.
Este velhote anónimo que morreu na miséria da tuberculose é o meu herói beirão, e uma das mais fortes memórias que fundam a minha ligação à terra.


Nada está feito, enquanto resta alguma coisa por fazer.
No caso da luta contra o desemprego, está tudo por fazer, em especial na Beira Interior, onde o desemprego continua a sua galopante cavalgada, rumo a um futuro sombrio e angustiante.
Nunca é agradável falar ou ler sobre desemprego.
É uma espécie de pudor tantas vezes remetido a bandeira de meia-haste eleitoral, a artigo estatístico no jornal, ou a pequeno drama familiar, explorado de forma lacrimejante nas Têvês em desespero de audiência.
O desemprego inspira piedade na sociedade portuguesa, e está sistematicamente no topo das preocupações dos compatriotas, quando chamados a botar “vox populi” sobre os temas que mais os preocupam no Governo da Nação. Não é por obra e graça do Espírito Santo que o Partido Socialista inscreveu no seu programa eleitoral a messiânica intenção de “criar” mais 150 mil postos de trabalho.
Os evangelistas das novas fronteiras sabiam que esse é um tema que fala ao coração caridoso das pessoas. O mandamento tem tanto de bíblico, como a multiplicação dos pães ou o “milagre” do crescimento económico; o novo Santo Graal da política económica nacional.

Só no Distrito de Castelo Branco, os números de desempregados de longa duração, superam a média nacional. Sabemos que o encerramento de fábricas e a débil estrutura empresarial da região explicam o aumento do número de desempregados, e a eminente ameaça da invasão têxtil chinesa virá agravar o problema e criar nalguns concelhos verdadeiras “catástrofes” económicas e sociais.
Ainda por cima, este problema afecta em particular homens e mulheres com mais idade e formação baixa, que os coloca à margem dos normais círculos de recrutamento. São uma autêntica legião de “excluídos” que engrossarão as plúmbeas estatísticas da exclusão social no distrito.
São famílias inteiras que ficam entregues aos humores e favores da justiça social, em situação de dependência extrema e em total desigualdade social, nas oportunidades e no acesso aos bens.
Muitas delas vão compondo a escassez com biscates e expedientes, e forrando a mesa com o produto das hortitas, quando as hortitas dão.
Porque a agricultura é de humores, e os de São Pedro parecem que andam de mal com a rega, e com a prosperidade do tomate. Dificilmente um pequeno agricultor verá um chavo de subsídio para a seca, que são destinados aos “pequenos” latifúndios da região, muitos deles organizados exclusivamente em função da lógica do subsídio, e não da produção competitiva.
Em pleno Séc. XXI, a ameaça medieval da fome temporã, volta a bater-nos à porta, desta vez de mansinho, pela calada da vergonha colectiva que nos faz desviar os olhos da miséria alheia. A côdea está cada vez mais negra, e nós cada vez mais cegos.

Os dramas humanos que se escondem sob o fenómeno “estatístico” do desemprego obrigam-nos a tirar as vendas de uma vez por todas, e exigir do Estado medidas que combatam eficazmente esta nova lepra, que exclui, afasta, inutiliza, empobrece e desespera.
É este combate ao desespero que urge travar, é o choque contra a pobreza e a desigualdade que é preciso aplicar antes de choques fiscais, tecnológicos ou afins. Essa batalha começa por todos nós, porque todos temos um papel a desempenhar. O primeiro passo é não ignorar o problema, não desviar os olhos e não imputar ao Estado todas as responsabilidades. Neste mundo, onde infelizmente os homens são lobos para os homens, podíamos aprender com os lobos, e saber que na matilha a solidariedade não é palavra vã.
Não falo da caridadezinha piedosa, da esmola que nos compra a consciência, da palmadinha nas costas ao som da “Má sorte a tua, antes que minha”.
Falo do respeito pela integridade da dignidade humana que é igualitária na responsabilidade que todos temos uns pelos outros. “Só olho um homem de cima, para o ajudar a levantar-se”, escrevia um escritor sul-americano (que não era o Gabriel Garcia Marquez).
Falo dos voluntários do Banco Alimentar contra a Fome, das empresas, das associações cívicas, das instituições de solidariedade social, das associações religiosas e da própria Igreja Católica que têm um papel fundamental no rastreio e acompanhamento da vergonha oculta que grassa nas nossas cidades e aldeias.
Este não é um tempo de virarmos a cara. É um tempo de recuperar a nobreza dos pequenos gestos e a grandeza da humanidade como projecto de bem comum.