Contra Vapor

"Este país está cheio de espertos e moralistas que até chateia. Precisava era de ser pasteurizado em merda de uma ponta à  outra"
José Cardoso Pires, in - Balada da praia dos cães

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sexta-feira, novembro 25, 2005

Morte a crédito

“O dinheiro é mais útil que a pobreza, quanto mais não seja, por questões financeiras.”
Woody Allen “Deus, Shakespeare e eu”

Comecei a gostar de ler por causa de dinheiro.
A minha mãe tinha uma mania de aforro que era guardar umas notas graúdas de contos de réis em livros.
Como habitualmente se esquecia da poupança refundida, lá andava eu ao pinga escudo, a devorar literatura da pesada. Uma autêntica caça ao tesouro que rendia os maravedis necessários para esbanjar em guelas e na colecção de cromos do Mundial de 82. O melhor achado foi na Divina Comédia de Dante em que no Inferno reluzia uma bem verde nota de cinco contos.
Foi assim que completei a selecção da Argélia e do Kuwait, com os cromos difíceis, como o fantasista Ladkhar Beloumi, o melhor futebolista argelino de todos os tempos, antes claro do toque de calcanhar de Midas Madjer.

Aquela mania do aforro literário deu uma forte contribuição pedagógica para a minha formação cultural, já que fiquei com um conhecimento ao val d`oiseau (viram bem este franciú, um luxo!) de literatura clássica. Recomendo vivamente “Decameron” de Bocaccio, leitura obrigatória para qualquer puto de 15 anos poder prestar o seu culto a Onan …
Passei também a ser o maior especialista da minha rua no Mundial de Espanha de 82; o melhor da minha geração (o Brasil de Zico, Falcão e Sócrates, a França de Platini, a Itália de Rossi, a Polónia de Boniek, etc).
Mais importante que tudo isso; passei a gostar de dinheiro, e a interiorizar a falta que ele faz para comprar bens essenciais – guelas, cromos e pastilhas gorila com sabor a banana. Como diz com propriedade e graça um amigo meu “o dinheiro também tem a sua poesia”.

Toda a gente sabe que o dinheiro não cai do céu, a não ser os milhões de marcos que a RAF largava sobre a Alemanha. Chumbei repetidamente a Economia até topar a artimanha de Churchill e qual o problema do dinheiro cair do céu. Ingenuamente pensava que assim toda a gente seria mais feliz, com os bolsos cheios para gastar em abafadores e bolas de Berlim.
A verdade nua e crua é que o valor do dinheiro está na sua escassez, e de nada valia andar a esgravatar a Biblioteca Nacional na esperança de um bibliotecário aforrista, como a minha mãe, lá ter incautamente deixado uma nota de 10 contos.
Quando se começa a dar valor ao dinheiro está o caldo entornado. Deixamos de pensar em abafadores e bolas de Berlim para deitarmos contas à vidinha e sonhar com telemóveis, férias em Bora-Bora, ténis Nike, Audis Tdi`s e sofás reclináveis com massagista incorporada.
Graças ao Montepio Geral e a outras simpáticas instituições de crédito, podemos olhar para essas aspirações e gritar a plenos pulmões:
– É que é já … a seguir!

Os tipos da publicidade passam a vida a atormentar-nos com desejos e seduções, como fazia o pasteleiro com a montra dos bolos debruados a chantili, e lá temos de andar a contar os tustos para satisfazer as expectativas de consumo, que em Portugal sempre foram bem maiores que o estômago do porquinho-mealheiro.
Nisto, também o Estado português parece um daqueles estoura-vergas que torravam a fortuna de família no Casino da Figueira da Foz e inventava uns expedientes mais artolas para manter as aparências da aristocracia falida.
Os portugueses sempre foram uns tesos à espera de uma herança, um treze no totobola, de uma notita de conto num livro de Pantagruel, ou que a RAF fizesse um raid sobre o seu quintal. Não estranha por isso que o Estado português se trate com carros de alta cilindrada para directores-gerais, comboios de alta velocidade, Euros 2004 e reformas milionárias para os obscuros vice-consolados no Sri Lanka.
É tramado dizer isto, mas o Estado português é mais parecido com os portugueses do que nós gostaríamos de supor. Basta perguntar ao Dr. Hermano Saraiva, que caminho levou a dinheirama dos Descobrimentos para descobrir um paralelo histórico com os dinheiros da CE. Naquela época foram para perucas empoeiradas a talco e palacetes na Baixa, agora vão para campos de golfe e jipes. É este traço de nacionalidade, mais perene que debulhar caracóis e enfardar bejecas no Verão, que o nosso Presidente da República parece desconhecer, quando apela aos Bancos para limitarem o crédito e apoiarem investimentos reprodutíveis, estilo empréstimo para montar um aviário de galinhas poedeiras de ovos de ouro.
Parece não saber que a nossa Banca também anda a viver à conta do fiado internacional, e segundo consta, vai pagar o dinheiro ainda mais carote, por causa de um “rating” de má fama, atribuído por uma agência europeia que faz o “ranking” da agiotagem. Qualquer dia o Dr. Vítor Constâncio tem plantado à porta do Banco de Portugal um cobrador do fraque…

Por tradição, a banca portuguesa é propensa à agiotagem e ao lucro fácil, e isso até nos convém.
Preferimos empenharmo-nos até às orelhas do que ficar sem o carrinho novo (aquele com jantes de liga leve, leitor mp3 e Diesel económico, mas possante, para não passar vergonhas na estrada, nem no parque de estacionamento lá do condomínio). Por isso, caro Presidente não se meta onde não é chamado, e vá lá pregar esse paternalismo choramingas para outra freguesia, que cá nos vamos remediando com o fiado.
Antes viver do que morrer a crédito como no romance do Céline; afinal até os funerais, que estão pela hora da morte, se podem pagar em suaves prestações mensais.
Para reflexões sobre a portugalidade e leitura alternativa a José Gil ou Eduardo Lourenço, aconselho meditação em qualquer tasca raçuda, com serradura no chão e dizeres no azulejo: - “Só se fia a maiores de 80 anos, quando acompanhados do encarregado de educação”, ou então o meu preferido - “O camelo é o animal que aguenta mais tempo sem beber. Não seja camelo”.
Compatriotas, deixemos de ser camelos, que o melhor é beber para esquecer.