Contra Vapor

"Este país está cheio de espertos e moralistas que até chateia. Precisava era de ser pasteurizado em merda de uma ponta à  outra"
José Cardoso Pires, in - Balada da praia dos cães

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sexta-feira, novembro 25, 2005

Muito circo e pouco pão

“Os pobres são tão infelizes que, quando estiver na moda cagar dinheiro, pois bem, terão prisão de ventre”
Jorge Amado, Bahia de Todos os Santos

Um em cada cinco portugueses vive no limiar da pobreza. Basta imaginar que na fila para a caixa do supermercado, uma das pessoas que está à sua frente pode não ter dinheiro para o cabaz mínimo de sobrevivência: pãozinho, leite e ovos. Mas vá lá, isto é meramente estatístico, não é real. Não precisa de acordar a sua consciência ensonada só por levar no cabaz um patêzinho de estalo e um Murganheira meio bruto.
Aliás, se calhar está como eu, e nem sequer sabia que havia um Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Sabia certamente que há 364 dias internacionais para esquecimento da pobreza, e apenas um em que nos lembramos que há pobrezinhos no mundo, e que esse dia é lá para os fins de Dezembro, em que também se canta a missa do galo.
Um Dia Internacional serve mais para expiar a má consciência e o egoísmo colectivo do que para alertar e despertar. Dizer que um em cada cinco portugueses vive no limiar da pobreza não vende jornais, aliás um em cada cinco potenciais compradores do jornal nem sequer tem dinheiro para um papo-seco com margarina, quanto mais para ler as indigestas colunas de Vasco Pulido Valente!

Numa terra onde a inveja sempre prosperou, é difícil vender inveja embrulhada com a pobreza.
É por isso que os mais avisados pegaram no tema ao contrário, na lógica marxista de “quantos pobres é preciso para produzir um rico?”
Sei que esta interrogação exaspera os sacerdotes do capitalismo untuoso, mas a verdade é que há resposta:
– As 100 maiores fortunas significam 17 por cento do PIB, e 20 por cento dos portugueses mais ricos possuem 45,9 por cento do rendimento nacional.
Não alimento nenhum ódio jacobino em relação aos ricos, mas julgo da mais elementar prudência desconfiar da capacidade de Portugal parir tantos ricos e tão pouca riqueza. Também me cheira a esturro sermos o país da UE com o maior fosso entre ricos e pobres, o que significa que a classe média é hoje uma espécie quase tão extinta como o Tigre da Malcata.
É por isso que quando vejo na televisão aquele furúnculo iracundo que é o vozeirão dos patrões, um tal de Ludgero Marques, recordo sempre a citação de Roland Jaccard no “Dicionário do perfeito cínico”:
“Um pobre tipo esfomeado implora ao Barão de Rotschild:
- Senhor barão, há três dias que não como nada!
- Pois bem – responde o Barão – é preciso que alguém o obrigue!”

Com excepção do corajoso “Público”, que por contraste publicava também a sua revista de economia cor-de-rosa “D” (de dinheiro, o tal que falta a um em cada cinco); ninguém ligou patavina ao “insólito” da pobreza ser uma epidemia em propagação mais exponencial do que a gripe das aves.
Olhos que não lêem, coração que não sente, e provavelmente, muitos dos leitores do “Público” terão passado pelo dossier sobre a pobreza como cão por vinha vindimada, preferindo o “glamour” da página 41, com a reportagem sobre essa efervescente prova de cosmopolitismo lusitano - a Moda Lisboa.
Uma autêntica feira de vaidades fátuas e onanismo de alta costura, que este ano revelou mais outros segredos de Fátima (a Lopes, do biquini de diamantes), e anunciou que afinal “Ana Salazar também sabe criar roupa light”, notícia recebida com indiferença pela população sem-abrigo de Lisboa (cidade que patrocina generosamente a Moda Lisboa).
População essa, que segundo o estudo citado pelo “Público”, cresceu 25 por cento nos últimos cinco anos.
Não será certamente a roupa “light” de Ana Salazar a dar agasalho aos milhares de vagabundos do nosso país.
E também não será o milhão e meio de contos que a Santa Casa da Misericórdia vai dar ao Rali Lisboa/Dakar que trará consolo, sopa e apoio social aos velhos abandonados nas aldeias do nosso país.
Percebo agora a pressa socialista na remoção de Maria José Nogueira Pinto da Santa Casa; aliás, a sua remoção da gestão dos Euromilhões – O Governo português precisava de arranjar um “truque” contabilístico para patrocinar a operação de João Lagos, e nada melhor do que uma dócil gestão na Santa Casa, para “orientar” este Santo Patrocínio do Euromilhões.
Num tempo em tanto se fala da falência do modelo social europeu, e da falta de recursos para o sustentar, como é possível sustentar esta bancarrota moral e cívica?
Como é possível só agora descobrir a negociata dos preços combinados dos medicamentos para diabéticos e do pão sujo fabricado por padeiros-capitalistas?
Num país de pobres até o pão é corrupto! Querem melhor metáfora para esta falência imunda?

Neste regresso à choldra, o que dizer do facto do pertinente estudo sobre a pobreza levado a cabo pela Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade (CNIS) se ter mantido no anonimato circunspecto dos gabinetes. Percebe-se esta cumplicidade do silêncio, porque a pobreza é tema pestilento, é lepra que convém manter “longe da vista”.
De acordo com o estudo apócrifo, que incidiu sobre as freguesias, a unidade mínima e mais real de diagnóstico dos problemas do quotidiano, os portugueses identificam “desemprego, dependências e pobreza como os maiores problemas das suas freguesias”, e que “à medida que se caminha para o interior do país, há mais pobreza, mais analfabetismo, mais solidão de idosos”.
Estas são de La Palisse, pensará o indómito e liberal Luís Delgado que pulula dentro de cada aspirante a “yuppie”, para quem o combate à pobreza se faz rezingando uma moeda ao arrumador; ou à moda antiga, como as tias da Covilhã de Alçada Baptista (não perder a nova peça do GIC), mantendo nas fímbrias da caridade cristã uma horda de pobrezinhos.
Mas, além do diagnóstico da pobreza (que encobre a fome), este estudo revela que a maior parte das instituições locais de solidariedade social apenas prestam serviços “garantidamente” financiados pelo Estado, quer pela sua facilidade burocrática, quer pela sua simplicidade operacional. Assim, na modinha do subsídio-dependência, as Actividades dos Tempos Livres (ATL) e as creches são tão populares, como as rotundas e as piscinas o são para qualquer autarca-espertalhaço na homília da reeleição.
A rede de apoio social falha em toda a linha, precisamente porque não trabalha numa lógica de proximidade e de inovação. É preguiçosa, burocrática e míope, e sabemos que de nada serve deitar dinheiro para os problemas, porque o mais certo é ficar sem o dinheiro e conservar os problemas.
Os senhores autarcas que agora foram eleitos deviam começar a preocupar-se menos com as obras visíveis e meter as mãos nesse incómodo e ultrajante flagelo que é a pobreza escondida nas suas terras.
É também para isso que foram eleitos. É para isso que lhes pagamos, não só para fazerem as obras visíveis, mas também as invisíveis, as que não rendem votos, nem inaugurações mediáticas, nem maiorias albanesas.
A pobreza não pode ser mais o pó varrido para debaixo do tapete em dia de visitas.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Vejo que o post já é antigo, mas nem por isso menos pertinente.
Grande texto, quisera eu escrever assim. De facto o tema não é simpático, nem glamouroso (??), incomoda até, talvez por isso ninguém o tenha comentado, estamos cada vez mais indiferentes aos dramas dos outros e cada vez mais preocupados com as minudências do nosso umbigo ou talvez nem seja isso. Fala bem quando se refere à extinção da classe média, aquela em que considero inserir-me,(e até sinto alguma culpa em expressá-lo) uma vez que compro os pacotes de leite que preciso sem pensar muito no preço que custam, mas essa mesma classe média que trabalha desgraçadamente de sol a sol e muitas vezes com a lua,fins de semana e feriados, para ganhar o tal ordenadito acima da média, que os insere num escalão médio alto de rendimentos, e que geralmente vive nas grandes cidades, e que acaba por não ter cheta porque estoira tudo nas creches privadas e nas empregadas domésticas (não por futilidade, mas porque o público não dá resposta) e se não tem pais ou sogros perto, alguém tem que ir buscar os putos e tomar conta deles enquanto os tais pais de classe média, quiçá média-alta, se esmifram num horário que é sempre certinho para entrar, mas nunca o é para sair, são um recurso caro para sair ás 18h, ah tem filhos? não tem cá familia? e o que temos a ver com isso? decerto que lhe pagamos o suficiente para poder pagar a alguém para os ir buscar e cuidar deles (pois é e já se vai um ordenado médio). Falta o resto: casa, comida, carro, seguros, impostos, roupa, tudo futilidades... já nem me atrevo a falar de férias... porque isso sim é uma verdadeira futilidade.. eu é que tenho a mania de pensar que não... Realmente é uma futilidade comparando com aqueles que não têm dinheiro nem para o pão, leite e ovos. Acho que me desviei do assunto mas o que quero dizer é que existem várias misérias, e a tal da classe média, aquela que normalmente se lixa a trabalhar, que ainda tem que se sentir agradecida e submissa por ter trabalho e envergonhada por se queixar da vida, está a desaparecer, mas a pender para o lado descendente e não para o ascendente ou seja à medida que o fosso alarga vai caindo lá dentro.
Desculpe ter-me embalado com o que me amofina, provavelmente não vai ler isto porque este seu post é antigo. Passei aqui por acaso e gostei do texto. obrigada

p.s. Também acho aquele Ludgero Marques uma raposa a querer dar ares de galgo arghh!

8:57 da tarde  

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