Contra Vapor

"Este país está cheio de espertos e moralistas que até chateia. Precisava era de ser pasteurizado em merda de uma ponta à  outra"
José Cardoso Pires, in - Balada da praia dos cães

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quarta-feira, janeiro 25, 2006

O bordel dos inúteis

“Sou escravo pelos meus vícios e livre pelos meus remorsos”
Jean Jacques Rousseau

O homem é escravo das suas paixões, sugeria Shakespeare e refém dos seus vícios. Vivemos reféns, numa jaula de ilusões, com pequenas janelas de ar puro, como o cinema. Fellini abriu uma janela em “Os inúteis”, a sua primeira grande obra. Numa pequena cidade de Itália cinco jovens amigos à deriva na boémia, feita de copos e mulheres, sem horizonte próximo, sem amor, sem escapatória.
Inesquecível a belíssima música de Nino Rota, que nos embala num filme de poesia crua e humana. Os “inúteis” são os excedentários de uma máquina de produzir expectativas e devorar sonhos. São os restos, as sobras.

Na minha terra há uma churrascaria. Vendia frangos assados e garrafas de tinto bera a camionistas e vendedores ambulantes. A A23 deu cabo do negócio e a churrascaria fechou. Agora é uma casa de putas, ou para sermos mais literários um lupanar; afinal os romanos também por aqui passaram e não deixaram só pontes para turista ver, ou ruínas para arqueólogo em início de carreira escarafunchar.
A churrascaria está na mesma. O balcão, as mesas, e até um pequeno altar sacrílego com a estátua da Virgem Maria, um poster do Sporting campeão (uma relíquia) e umas garrafas de VAT 69 do tempo da I República. A única coisa que mudou foi a mercadoria transaccionada. O negócio continua a ser da carne, antes eram frangos, agora são mulheres. Brasileiras desdentadas e já entradotas saracoteiam as mini-saias para embeiçar os velhotes de Mini na mão, Viagra no bolso e tractor estacionado à porta.

O Necas nasceu na aldeia. Menino do campo, filho de pastores, cresceu pastor. O pai deu-lhe a primeira ovelha quando ele fez 12 anos. Foi uma alegria, uma espécie de ritual de passagem de idade. Lembro-me quando ia com o Necas levar a Estrelinha a pastar. A infância passa a correr, e o Necas cresceu. Fez a quarta classe a custo e viveu ali na terra toda a vida. A única vez que saiu da aldeia, foi para fazer a tropa. Começou a fumar SG Ventil e a beber cerveja, como um homem, e continuou a pastar ovelhas e a viver na velha casa de granito dos pais.
Na minha terra não há raparigas, e as poucas que havia em idade casadoira, cedo partiram, ou foram fazer enxoval para outra freguesia. Sobraram os rapazes. Boa rapaziada, mas refém da terra estéril, do trabalho de assentar tijolo, dos biscates. Refém dos copos e das bebedeiras na taberna.
Os rapazes da minha terra cresceram sem amor, sem aquelas aventuras juvenis da paixão, do namorico, e da descoberta do sexo. Quando iam às festas nas outras terras, à procura do namorico, enjorminavam-se de tal forma que espantavam qualquer candidata.
Agora as festas de aldeia são chochas e eles passaram de miúdos a homens rudes de mãos estragadas pelo cimento; mãos que nunca acariciaram o corpo de uma mulher que lhes retribuísse o amor.
Agora, nesta nossa Cova à beira da morte é tarde para “inúteis” da minha terra. O álcool e o bordel são a única janela que podem abriu da jaula.
O Necas, meu amigo, tal como Constantino, pastor dos sonhos da nossa infância, cresceu sem amor. É agora homem feito e abriu a janela. Todos os tostões que ganha de trolha e de pastoreio torra-os no bordel. Tem um corpo esquálido e definhado do álcool e nos olhos varejados de sangue um brilho triste, melancólico e vingativo.
Um filho extremoso e dedicado que se transformou num monstro egoísta. Trata mal os pais, é irascível, preguiçoso, fica até tarde a cozer as bebedeiras e vai estourando o parco pé-de-meia de uma vida.
Como Nicolas Cage do filme “Viver e Morrer em Las Vegas”, o Necas vai-se suicidando lentamente. Trocou as Minis pelo venenoso whisky, e a timidez sexual pelo prazer a pagantes. Vinga-se de uma vida que lhe recusou o amor e os sonhos. Um dia vão encontrar o Necas, caído numa valeta como um cão cansado de tentar escapar do açaime.
Para fugir da jaula, o Necas ficou refém do bordel.

Na SIC-Notícias, passou no outro dia um impressionante documentário sobre “escravatura sexual”. Uma viagem aos tenebrosos meandros da mega-indústria do sexo que mostrava como a pobreza e a miséria da Ucrânia e da Moldávia servem de “pasto”, para aves de rapina do proxenetismo organizado abastecerem os mercados internacionais da prostituição. Mulheres que são iludidas com promessas de uma vida melhor e com empregos honestos no estrangeiro, e que chegadas ao seu miserável destino, são vendidas, ficam sem passaportes e sem identidade, são violadas, e se tornam mercadorias para satisfação de clientes.
Quantas escravas sexuais há a trabalhar nos bordéis portugueses, que se espalham como cogumelos pela província? Quantas mulheres são obrigadas a fingir dar amor ao Necas, e aos milhares de homens que nos bordéis encontram a janela aberta da jaula? Quantas mulheres são submetidas a maus-tratos para enriquecer os canalhas dos “industriais da noite”?

De toda a mixórdia de boçalidades que foram proferidas pelos putativos candidatos à Presidência da República, uma mereceria decerto outra atenção, que não o repimpar de lérias em prime-time, e uma ou outra estocada sobre a moral e dos bons costumes.
Honra seja feita a Mário Soares que disse abertamente ser a favor da legalização da prostituição em Portugal.
É tempo de acabar com a velha cultura burguesa das “públicas virtudes, vícios privados”, que lançou Portugal neste ambiente dissoluto, desprovido de valores, egoísta e trafulha. Basta de moralismos sacanas!
O licenciamento público de bordéis estaria a autorizar a venda de sexo como actividade comercial. Pois bem, e daí? As feministas bem podem queimar soutiens e os padrecos brandir excomunhão, porque o importante são as pessoas. Não como elas deviam ser, mas como elas são.
Como actividade regulada, vigiada, e tributada a prostituição deixaria de ser o inferno humano que é. Segurança física, financeira, higiénica e psicológica para as prostitutas, em estabelecimentos licenciados com regras sanitárias e laborais muito rígidas.
Como actividade organizada a prostituição afastaria os criminosos, os lucros milionários frutos da exploração, e permitiria que através da tributação fiscal fossem criados meios de apoio e reinserção social.
Com a liberalização da prostituição, as prostitutas deixariam de ser tratadas como mercadoria, e tanto elas como os clientes ficariam mais protegidos desses parasitas que vivem nas fímbrias de uma sociedade moralista.
É pena que em Portugal, os políticos passem tanto tempo a falarem de coisa nenhuma, e se ocupem tão pouco tempo das pessoas e dos seus problemas. Porque as prostitutas e os Necas deste país também são gente!