Contra Vapor

"Este país está cheio de espertos e moralistas que até chateia. Precisava era de ser pasteurizado em merda de uma ponta à  outra"
José Cardoso Pires, in - Balada da praia dos cães

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sexta-feira, novembro 25, 2005

Sebastianismo, esse cadáver adiado

“O inconsciente dos portugueses recomeçou a carregar-se e electrizar-se com aquela loucura nacional (o sebastianismo), sem a qual, ai!, sem a qual – os portugueses são cadáveres adiados; sim são adiados… espanhóis!”
Vicente Sanches in “Promissão do Quinto Império”


Tragam-me um purgante, um laxante, um comprimido para o enjoo, ou o raio que o parta. Os próximos tempos vão ser aziagos, azientos, e propensos à doudice.
Vai ser um arrotanço de postas de pescada de alto lá com ele.
Portugal quer acertar contas com o passado, mas seria preciso recuar até Afonso Henriques para tirar meças à espada do “Fundador”, que reza a lenda seria um espadalhão de estoura-vergas, como o seu manuseador.
Como na forja da Lusitânia já não há centelha de génio nem serracenos para traulitar, resta-nos saldar contas com o nosso infausto passado recente.
As próximas eleições presidenciais são por isso um exercício freudiano, uma sugestão de hipnose para expiação dos traumas do passado, que nos permita resolver as aflições da vida presente e futura. Trata-se de um regresso a Édipo e a Electra, através dos “mitos” da política à portuguesa que melhor se identificam com a imagem do Pai – austero, crispado e castigador Cavaco; e da Mãe – Cordial, intuitivo e condescendente Soares.
Desenganem-se os sofisticados analistas, porque o fenómeno em causa é do fórum da psicanálise e da sandice endémica, e nada tem a ver com uma visão para o futuro do país, uma leitura do mundo em que vivemos, ou sequer um rumo para o nosso taralhoco devir colectivo. Trata-se de mais um ataque de sebastianismo, a doença crónica do espírito luso, que recrudesce em momentos de estertor de Portugal.
Só quem se renda a “delirius tremens” próprios do consumo exagerado de editoriais do “Expresso”, de patacoadas do “Prós e Contras”, ou de doses maciças de Brandy Mel, pode acreditar que estas eleições presidenciais são decisivas para o futuro.
Com todo o penhorado respeito que me merecem os néscios, não entendo como é que esta vaga de saudosismo místico pode trazer alívio para um enfermo cada vez mais carecido da beatitude apaziguadora da extrema unção.
Julgo natural ter saudades das coisas boas do passado -, como dos golos do Eusébio, das férias em Castelo Novo, do primeiro álbum dos Pixies, da primeira namorada, dos episódios do Dartacão, ou dos antigos camaradas dos copos.
Agora ter saudades do Cavaco e do Soares?! Tenham dó!


Portugal parece cada vez mais um bando de beatas à palheta no adro da igreja: “Os jovens de agora são uma pouca vergonha, no nosso tempo é que era”, sentenciam.
Esta é a grande clivagem geracional que vai emergindo e não se reduz a um boletim clínico sobre as aptidões físicas e intelectuais dos candidatos a Papandreou à portuguesa.
Perdoem-me a franqueza, mas uma sociedade que acredita que os seus velhos são o futuro, está a ficar xexé, decrépita, e irremediavelmente acorrentada a um passado que de glorioso apenas tem uma memória distorcida.
Na “Visão” Fernando Dacosta desfazia-se num choradinho sobre a forma como muitos dos homens bons da sua geração foram sendo arrumados na prateleira do esquecimento, e triturados por uma “nouvelle vague” de tecnocratas ambiciosos e sem escrúpulos que levaram este país ao estado miserável em que está.
Não discuto essas injustiças, mas para Dacosta e uma certa esquerda desencantada e ressabiada, a candidatura de Soares parece perfilar-se como uma “vendetta” da brigada do reumático contra os jovens turcos, cuja ambição fez perder Portugal - uma geração que, coincidência das coincidências, foi forjada sob o estigma do “sucesso” e da miragem do oásis cavaquista. Essas pieguices dacostianas caucionam a desresponsabilização colectiva, como se não tivéssemos todos culpas neste cartório da esperança frustrada.

Julgo mesmo que a única discussão relevante que poderia brotar destas eleições seria o papel da renovação das elites políticas e intelectuais na dinâmica e inovação das sociedades.
Essa discussão não vai acontecer por causa da bizantina regra da educação que nos instiga a ter respeito pelos mais velhos. Ora estou cheio de vontadinha de perder o respeito pelos mais velhos. Foram eles que nos serviram a liberdade e a democracia, que recebemos com a gratidão que se deve ter para todas as dádivas.
Mas c`um caneco, já lá vão 30 anos, e há certamente melhores formas de preservar e honrar a memória, do que conservar a memória no fermol do poder.
E quando falo no poder, não é apenas na Presidência da República. É também na administração pública, nas empresas do Estado e em muitas carreiras no sector privado em que a antiguidade é sinónimo de competência.
Os partidos políticos são apenas reflexo dessa falácia, utilizando os mais jovens, como o fenómeno Tino ou os milhões jotinhas como aberrações de feira, para mostrar que se estão a renovar e a meter sangue novo nas veias esclerosadas das organizações de poder.
É por isso que a pieguice de Dacosta é apenas ilusionismo fatela. O problema é exactamente ao contrário: Portugal é um país de velhos, governado por velhos, em que a alegada experiência, sabedoria e visão “estratégica” são glorificadas; em detrimento da inovação, da criatividade e do risco.
Somos um país conservador porque nos tornamos neste condomínio fechado de comparsas e clientelas, que desconfia dos “jovens turcos” porque vê neles uma ameaça ao seu poder quase vitalício e ao escudo de regalias que foi ardilosamente construindo ao longo dos anos.
Caminhamos para a gerontocracia caquética, e nem sequer nos damos ao respeito de saber cuidar dos nossos velhos; os outros, os sem-poder e sem-sobremesa (como dizia Ruy Belo); os velhos esquecidos e amontoados em filas de espera da morte, abandonados em lares escôncios e miseráveis.
Se não fosse indecoroso era cómico.

É por isso que optar entre Mário Soares e Cavaco Silva, é escolher um chão que já deu uvas. Eles são obviamente referências da nossa jovem democracia, mais pelas coisas que não fizeram, do que pelo que fizeram em matéria de governação.
E não consta que tenham feito um país moderno, civilizado, humano, eticamente responsável e economicamente sustentável. Falharam em todas as frentes e foram eles os primeiros coveiros; os que se seguiram apenas acrescentaram as pázadas com que se vai enterrando o defunto.
Endeusar Cavaco e Soares é por crendice de quem ainda não meteu no bestunto que este modelo de país deu o badagaio, faliu, implodiu, finou-se!
As próximas presidenciais são assim uma funesta adaptação da “Birra do Morto” de Vicente Sanches. Convém que um dia destes alguém informe o país que está morto, que se passe uma certidão de óbito, e que se continue com a vidinha, construindo um novo, que para viver há sempre tempo. Há uma geração que falhou Portugal e a já estamos fartos de ser cadáver adiado e cada vez mais adiados espanhóis…