Contra Vapor

"Este país está cheio de espertos e moralistas que até chateia. Precisava era de ser pasteurizado em merda de uma ponta à  outra"
José Cardoso Pires, in - Balada da praia dos cães

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sexta-feira, novembro 25, 2005

Requiem por um cão de quinta

“(…)Às vezes sabíamos de ti pelo aroma
das glicínias escorrendo no muro,
outras pelo rumor do verão rente
ao oiro dos velhos plátanos.
Vais e vens. E quando regressas
é o teu cão o primeiro a sabê-lo.
Ao ouvi-lo latir, sabíamos que contigo
Também o amor chegara a casa.”

Eugénio de Andrade, “Memória dos Dias”


Em pleno vapor da panela de pressão autárquica e espasmos corporativos de toga e farda de três em pipa, parece-me prudente e de bom gosto tergiversar sobre cães.
Deixemos a toga, por ora, na paz surda das suas regalias de casta, e a farda em desfile “fashion”na caserna de Zé Castelo Branco. Deixemos Felgueiras aos seus trauliteiros, Oeiras aos seus embusteiros, e o resto deste país entregue, como sempre, a uma respeitável súcia de filibusteiros.
Falemos de cães, daqueles que ladram indiferentes à chinfrineira da caravana autárquica. “Uivemos, irmãos!”.

O Leão morreu. O último príncipe plebeu da dinastia de cães de quinta dos meus avós morreu novo, desapareceu envolto em bruma de D. Sebastião de cauda a abanar, e abalou lá para o seu nefando Al-Quibir.
Leão chegou cachorro e foi recebido como príncipe que era; coroado de mimos, festas e cabriolices, perante o ar desaprovador do meu avô: – Dão-me cabo do cão se o rebentam com mimos, ainda fica podengo manso!
Pois sim, cão de quinta não é para ser apaparicado como lulu burguesote de pêlo enrolado e tratado. Cão de quinta, malgrado o porte, é para ser cão bravio, domado à voz do dono. É para carregar carraça, eriçar pêlo e arreganhar incisivo a forasteiro mais afoito a meter o pé em ramo verde.
Cão de quinta é guarda fardado, não é dama de companhia para as festarolas de “madames ao buffet”.
O meu avô, sempre severo com animais, nunca dá aos seus cães a confiança de uma festa; aprecia-lhes o trotear camarada e a lealdade quando vai para a horta, mas não lhes autoriza a cúfia e o abuso, que são banidas a enxoto em ameaça de butes. Apesar de o temer, Leão dedicava-lhe uma estima discreta e fiel, reservando as brincadeiras e a pândega para nós, e para a minha avó a paixão rejubilante.
A minha avó era quem lhe dava comida, mas também quem o tratava com aquela familiaridade íntima que os cães adoram, porque os faz pertencer a um mundo de afectos.
Na quinta isolada da Gardunha a minha avó queixa-se muitas vezes: – Passam-se dias que não vejo ninguém, só falo com o teu avô e com o cão!
E era mesmo. Ralhava com ele, fazia-lhe festas com palavras doces como as que dá aos netos. Era digno de se ver as suas procissões organizadas caminho acima para desentorpecer as pernas, apanhar ar e alargar horizontes para lá dos muros da quinta.
A Dona Piedade à frente, seguida de Sua Eminência Cardeal Leão, bamboleando a sua importância à frente do triunvirato de gatos vadios, que foram acolhidos pela Rainha daquela quinta-castelo do bom coração.

É certo que o presságio do meu avô se confirmou, porque o Leão acabou por se fazer pacholas, um Gandhi canino de língua à banda, incapaz de se pegar com os gatos-refugiados ou rosnar a qualquer forasteiro em visita a desoras.
Foi de todos os cães da quinta, o primeiro que nunca vi rosnar, nem ladrar zangado, nem eriçar o pêlo.
Com o amor e as festas ficou demasiado parecido com a minha Avó Piedade, demasiado bom cão, para ser cão bera. O meu avô perdoou-lhe a incompetência de guarda-nocturno com a recriminação: – O cão não dá sentido, nem sinal nenhum – como se fora cão-alarme – mas é bom cão, sim senhor!
Sentença lavrada, viveu o Leão uma vida curta, mas boa para cão de quinta. Comia o que lhe davam para comer, gulodices à fartazana em dias de festa e de sobras da família reunida, e minguava quando a ementa era um simples arrozinho ou sopas de leite, que já se sabe, os velhotes contentam-se com pouco.

Na sua vida curta pode não ter sido feroz cão de guarda, mas foi pelo seu carácter e generosidade, um excelente cão de companhia. Só os meus avós, e tantos avós como eles, isolados no frio da velhice, esquecidos nos Invernos de lareira nunca extinta, só eles sabem apreciar um cão de companhia afectuoso.
Salteadores de caminho e ladrões de fruta ainda os há, mas debandam as cidades, e movem-se nos corredores acolchoados do poder, por isso, e cada vez mais, os cães de quinta perderam a sua valência securitária e passaram a ter um papel humanitário.
São eles que substituem os filhos e os netos no coração dos velhos entre as Páscoas, os Natais e as festas da Nossa Senhora da Misericórdia. São eles que fazem os velhos sentirem-se vivos, nas suas preocupações, cuidados e ralhetes.
Ter animais para tratar é o melhor lenitivo para a solidão ressentida da velhice. Os cães de quinta parecem sabê-lo, e retribuem o trato com dedicação e uma psicologia por vezes interesseira do osso mais nutrido, mas sempre “humana”, de quem defende e ama “o próximo”.
- Já andava xoxito, era malina de certeza, andou lá por fora dois dias, e uma vez à tardinha apareceu-me aí com uns olhos tão tristes que até me doeu o coração, abeirou-se de mim, encostou a cabeça para uma festa, e depois meteu leirão abaixo. Veio fazer as despedidas antes de ir morrer longe.
-Contou-me a minha avó, sem conseguir conter uma lágrima furtiva. -Andei uns dias que até sonhei com o cão – confessou.

E ali ficamos no terreiro, debaixo das latadas de Setembro, a recordar os cães da quinta, desde a Bolinhas, que dava conta assim que assomávamos ao cimo do caminho; ou do Tarzan, o pastor alemão que veio já canzarrão, e que de manhã me ia abocanhar a mão à cama para irmos brincar para a ribeira; ou do Pirata, o cão vesgo de lutar com um lobo, raçudo e pequenote, estava sempre pronto para uma boa bulha (era o preferido do meu avô); ou a Coimbra, mãe-parideira que uma vez foi salvar a minha prima ainda criança de ir para a estrada.
Ali ficámos à sombra amena de Setembro a recordar os cães que cresceram connosco e que ganharam o espaço nas memórias felizes da família, os cães de guarda que sempre guardaram os meus avós da solidão.
Lá dentro na televisão, uma grande ladroada num debate de candidatos às eleições autárquicas, e nós cá fora, confortados nas saudades boas dos tempos que já não voltam.
Dou comigo a pensar que para os meus avós é muito mais importante o futuro cão da quinta do que o futuro presidente da câmara municipal. Olho para a televisão e acho que quanto mais conheço os homens, mais gosto de cães.