Contra Vapor

"Este país está cheio de espertos e moralistas que até chateia. Precisava era de ser pasteurizado em merda de uma ponta à  outra"
José Cardoso Pires, in - Balada da praia dos cães

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sexta-feira, novembro 25, 2005

E agora Velha Europa?

“Ás vezes, em França, os proprietários de pequenas moradias possuem cães tão grandes como vacas. E para defender o quê? Uma mesa de cozinha com toalhas aos quadrados, uma cama para duas pessoas com uma colcha de croché, um relógio do avô e uma televisão a cores.”
Rudolf Bakker


A geração que fez o Maio de 68, e que barricou Malraux e a Sorbonne e derrubou De Gaulle, a geração que quis mudar o mundo com cocktails molotov, acordou há dez dias no seu pior pesadelo. A profecia de Marcel Joohandeau em 6 de Maio de 1968 cumpriu-se com um rigor que faria Nostradamus corar de inveja – “Voltem para vossas casas! Daqui a dez anos, todos vocês serão notários…”.
Nem todos são notários, há até alguns que são deputados europeus, mas quase todos eles se transformaram naquilo que há quase 40 anos combateram nas ruas de Paris – em burgueses refastelados e conformistas.
A notários não chegarão certamente os milhares de jovens que estão envolvidos nos piores motins urbanos de que há memória na Europa nos últimos anos, repetindo o que aconteceu em Los Angeles há uma década, depois de uns gorilas da LAPD terem espancado um jovem negro.
As grandes cidades europeias, símbolos de um certo cosmopolitismo multiétnico, são hoje um autêntico barril de pólvora; basta dar fogo ao rastilho, para a revolta se propagar por todas as “bidonville” e guetos suburbanos da Europa, como aliás já aconteceu na Alemanha.
Previsivelmente, este fenómeno vai despoletar um acalorado debate sociológico e ideológico, em que a Velha Europa gosta de rebolar, sempre que a sua miopia e inércia é sacudida, e quando os seus orgulhosos valores universais são vítimas das insanáveis contradições de que enferma uma certa ideia de que a Velha Europa faz dela própria, como aquelas senhoras excessivamente maquilhadas e dadas as liposucções, mas sem solução para a decrepitude.
Mais do que os milhares de carros incendiados em Paris, o perigo está no aproveitamento que for feito dos escombros dos motins. Devemos todos preocupar-nos com o rescaldo político desta Intifada urbana. Os grandes vencedores das batalhas-molotov de Paris e Toulouse não são os Ahmeds e Hassans, franceses, filhos de emigrantes, que vivem na lógica criminosa de bairros degradados e veneram Alá, com a mesma facilidade que se submetem aos cânones do rap guerreiro americano, numa busca de identidade transterritorial, que é também a matéria-prima e o húmus do terrorismo muçulmano.
Os grandes vencedores serão os extremismos, que vivem como parasitas destas inquietações, que se alimentam do medo e da intolerância, cada um com o seu hábil harpejar de conveniências. Quem ganha antena e megafone são os Le Pen`s e as Dianas Andringas (salvo a devida escala) desta Europa. O debate será entre a política do cacetete e da contextualização, formas ambíguas de iludir esta séria ameaça à paz social da Europa.
Cada uma destas correntes de pensamento extremista dará a sua interpretação dos motins de Paris, e ambas darão respostas e soluções, apenas viáveis no domínio das utopias sociais, que estiveram na base dos mais graves conflitos de que a Europa foi palco no século XX.
Le Pen, credenciado xenófobo e racista dirá que a culpa é da imigração, dos terroristas que são acolhidos pela França, abrigados sob o santuário da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, e que roubam os empregos aos franceses de gema, pegam-lhes fogos aos Renault, e querem tornar a França numa república muçulmana e obrigar as colecções da Chanell a incorporar o véu muçulmano. A solução está no autoritarismo, na repressão, no fecho de fronteiras, porque só assim a França recuperará a sua grandeza e os franceses os seus empregos. Isto é, como se sabe, música para os ouvidos de muito boa gente, sobretudo a mais pobre e que vive com maiores dificuldades, que vê num magrebino um rufia ou um mártir da Al-Qaeda.
Do outro lado, a esquerda bem pensante dirá, com a generosidade que só a ignorância autoriza, que o fenómeno é causado pela falta de integração social, pela discriminação, e por uma cultura de planeamento urbano que favorece a concentração em guetos de comunidades étnicas, que são afastadas como excrementos de uma sociedade egoísta e preconceituosa. Para esta esquerda, que nunca andou num bairro tramado depois das sete da tarde, ou num comboio da linha de Sintra, os Ahmeds e os Hussein, coitados, são produtos de um modelo esclavagista e racista. Eles não são beras, só ficaram beras porque o capitalismo selvagem e a sociedade os obrigaram.
Está visto que não há maneira de enterrarmos o bom selvagem do Rousseau, até ao dia em que o bom selvagem, inimputável por definição, nos enfiar uma navalhada no estômago.
Para esta esquerda luminosa, a solução está no franqueamento das fronteiras, na demolição dos bairros degradados, e na construção de vivendas com sardinheiras no jardim para estas pobres vítimas do infortúnio, cujas grandes ambições são ter uns ténis Nike e um telemóvel 3G. Como se vê, é tão fácil como isto alinhar no discurso preconceituoso e estereotipado.
O que está em causa com os motins de Paris, transcende em muito a criminalidade vulgar, pelo que não basta a urgente reposição da ordem pública, com meios adequados, e proporcionais à violência enfrentada (sim, o cacetete também é legítimo para impôr a autoridade de um Estado democrático). É preciso que a União Europeia e os Estados Membros coloquem no topo da sua agenda temas como a imigração, o futuro das cidades, a integração e tolerância social.
Entre as barricadas de Paris e o vergonhoso tratamento dado pelas autoridades espanholas aos refugiados e imigrantes em Ceuta a distância é demasiado curta, e o tempo demasiado escasso. A Europa envelhece e precisa de imigração, como de pão para a boca, mas não apenas para ter “escravos” a preço de saldo a trabalhar nas obras para prover as nossas pensões e para o sustento do falido modelo social europeu, mas para receber todos aqueles que queiram melhorar as suas condições de vida e participar num projecto colectivo de bem comum, onde a liberdade, igualdade, fraternidade não sejam palavras vácuas para usar nos discursos pomposamente fúnebres do Palácio Eliseu.
A França e os franceses estão a pagar bem caro essa falácia de sociedade aberta, que oculta um chauvinismo e racismo ultramontano, ou uma tolerância burguesa e meramente intelectual (como a da geração de Maio de 68).
A França paga o preço de ter aceite os imigrantes para reconstruir um país e assentar tijolos, mas raramente ter aceite os imigrantes e os seus filhos para notários (como tantos compatriotas nossos o amargamente sabem).
Como diria Jean Cocteau “A França é um galo em cima de uma estrumeira. Tirem a estrumeira e o galo morre”. A França paga hoje o preço da sua autista soberba.
Outros se seguirão.